com
Yaxkin Melchy
dos Andes ao Monte Tsukuba. do ábaco maia ao haiku japonês. a paixão que corre pelo sangue de Yaxkin Melchy o faz caminhar da América Latina à Ásia.
nascido em 1985 na Cidade do México, Yaxkin era uma criança atenta aos fluxos naturais que, na juventude, se tornou um poeta experimental. mas no fundo de seus próprios experimentos ele encontrou novamente o canto dos pássaros, as formas de uma teia de aranha, a luz da lua refletida na água. traduziu para o espanhol o poeta beat Nanao Sakaki, e a admiração por este poeta o fez migrar para o Japão, onde persegue com os próprios pés os movimentos de Nanao e de seus contemporâneos.
editor, poeta, pesquisador, Yaxkin Melchy fala à mataviva sobre como a poesia brota da natureza, sobre como os cantos de seus avós quéchua ainda estão vivos nele próprio, e especula sobre como viver neste Planeta Terra. uma conversa transpacífica, com a força da poesia.
nascido em 1985 na Cidade do México, Yaxkin era uma criança atenta aos fluxos naturais que, na juventude, se tornou um poeta experimental. mas no fundo de seus próprios experimentos ele encontrou novamente o canto dos pássaros, as formas de uma teia de aranha, a luz da lua refletida na água. traduziu para o espanhol o poeta beat Nanao Sakaki, e a admiração por este poeta o fez migrar para o Japão, onde persegue com os próprios pés os movimentos de Nanao e de seus contemporâneos.
editor, poeta, pesquisador, Yaxkin Melchy fala à mataviva sobre como a poesia brota da natureza, sobre como os cantos de seus avós quéchua ainda estão vivos nele próprio, e especula sobre como viver neste Planeta Terra. uma conversa transpacífica, com a força da poesia.

MARIPOSA SOB A CHUVA
Chega o dia
que não importa quem sou
nem o que fui
nem o que serei
que se borram como as ilusões
dos reflexos da água
como as formas das nuvens
como o som de uma gota de água
e outra
Tudo é ouvido
Tudo canta
Tudo vê com os próprios olhos
e saboreia a água
e se nutre da terra
Tudo conhece seu aroma
e vive e se liberta
e morre e se incorpora
Sem importar quem passou
nem o que será
Importa no momento que
seu coração palpita
Fala no momento
em que seu coração palpita
Diz seu sonho no momento que
seu coração palpita
Sem jamais perder a origem
não importa se você semeia
ou se a ignora
A origem se volta a si mesma
como a primavera
e caminha adiante
Porque parar para deter seu passo
se o coração se solta
avança com a primavera
e pousa suave
sobre a flor.

mataviva como a natureza e a poesia se encontraram em sua vida?
yaxkin melchy Eu acredito que minha consciência da natureza começou com a intuição poética. Quando era criança comecei a perceber que havia coisas no mundo que permaneciam em um estranho silêncio e que com este silêncio me comoviam. Acho que foram coisas muito simples como as sementes vermelhas do colorín ou zompantle (Erythirina americana) que caem na terra, a aparição surpreendente de miríades de besouros mayates (Phyllophaga) e o voo dos pássaros nos “terrenos baldios” que rodeavam o conjunto habitacional onde cresci. Também me lembro do eclipse solar de 1991, do cometa Hale Bopp e da estrutura de uma teia de aranha no canto da minha janela. Eu acho que intuía que essas pequenas coisas existiam com grande força, mas não sabia dizer o que era essa “grande força”.
Acho que todos temos esse tipo de experiência. Agora, depois de trinta anos, penso que essa é a experiência da poesia que vem da natureza. Depois foram a sorte, os sonhos e uma série de pessoas que me levaram a conhecer algo chamado “poesia”. Ainda que eu acredite que a poesia seja literatura, acho que também é algo mais, uma maneira de articular com o coração a voz de tudo o que fala, incluindo Deus, a natureza e o espírito humano. Meus professores de língua espanhola tinham admiração e respeito pela poesia. Então um dia sonhei que escrevia um poema muito grande e quis tornar-me poeta.
Logo comecei a frequentar algumas oficinas e comecei a escrever poemas que expressavam meu próprio mundo urbano e ferido. Quando comecei a ler os poetas de vanguarda senti que sua experimentação era o caminho para romper com as barreiras do medo e do erro. Durante dez anos busquei um caminho por meio da experimentação, mas na realidade o que buscava era um tipo de liberação ou cura do meu espírito para retornar à beleza primordial. No caminho encontrei coisas muito interessantes, mas também me dei conta de um tipo de armadilha: a experimentação pode nos levar até limites assombrosos da linguagem, mas esses limites podem estar muito próximos do egocentrismo e da alienação.
Foi quando experimentei a força da poesia da natureza que meu espírito se lembrou do que intuía meu coração de menino, que no belo e no sonoro não há apenas um poder de linguagem mas uma verdade que nos torna livres. Quando aceitei isso, nasceu a visão de que a poesia é uma corrente que flui desde a origem do ser humano. Existe na palavra ancestral uma nascente mais distante do que podemos enxergar, e que seguirá fluindo até o mar que também está mais distante do que o ser humano hoje pode ver. Essa experiência eu vivi na selva amazônica peruana em 2015, e depois em 2016 e 2018, e pouco a pouco foi fluindo naturalmente no México e no Japão, aprofundando-se como um rio na terra. Essa experiência na maloca de Pedro Favaron, na comunidade nativa de Santa Clara de Yarinacocha, foi um verdadeiro retorno à vida, à floresta da vida. Falo sobre ela no texto ¿Qué se siente vivir en la tierra?.
Acho que todos temos esse tipo de experiência. Agora, depois de trinta anos, penso que essa é a experiência da poesia que vem da natureza. Depois foram a sorte, os sonhos e uma série de pessoas que me levaram a conhecer algo chamado “poesia”. Ainda que eu acredite que a poesia seja literatura, acho que também é algo mais, uma maneira de articular com o coração a voz de tudo o que fala, incluindo Deus, a natureza e o espírito humano. Meus professores de língua espanhola tinham admiração e respeito pela poesia. Então um dia sonhei que escrevia um poema muito grande e quis tornar-me poeta.
Logo comecei a frequentar algumas oficinas e comecei a escrever poemas que expressavam meu próprio mundo urbano e ferido. Quando comecei a ler os poetas de vanguarda senti que sua experimentação era o caminho para romper com as barreiras do medo e do erro. Durante dez anos busquei um caminho por meio da experimentação, mas na realidade o que buscava era um tipo de liberação ou cura do meu espírito para retornar à beleza primordial. No caminho encontrei coisas muito interessantes, mas também me dei conta de um tipo de armadilha: a experimentação pode nos levar até limites assombrosos da linguagem, mas esses limites podem estar muito próximos do egocentrismo e da alienação.
Foi quando experimentei a força da poesia da natureza que meu espírito se lembrou do que intuía meu coração de menino, que no belo e no sonoro não há apenas um poder de linguagem mas uma verdade que nos torna livres. Quando aceitei isso, nasceu a visão de que a poesia é uma corrente que flui desde a origem do ser humano. Existe na palavra ancestral uma nascente mais distante do que podemos enxergar, e que seguirá fluindo até o mar que também está mais distante do que o ser humano hoje pode ver. Essa experiência eu vivi na selva amazônica peruana em 2015, e depois em 2016 e 2018, e pouco a pouco foi fluindo naturalmente no México e no Japão, aprofundando-se como um rio na terra. Essa experiência na maloca de Pedro Favaron, na comunidade nativa de Santa Clara de Yarinacocha, foi um verdadeiro retorno à vida, à floresta da vida. Falo sobre ela no texto ¿Qué se siente vivir en la tierra?.

mv você escreveu um mestrado sobre o poeta japonês nanao sakaki. o que te fascinou em Nanao? o que sua vida e sua poesia te ensinaram?
ym Nanao Sakaki foi um poeta andarilho e um ativista ambiental. Viveu como uma espécie de poeta vagabundo, e foi um seguidor espiritual de Milarepa, de Issa Kobayashi e de Kokopelli que acabou se transformando em uma espécie de voz transcontinental da consciência ecológica.
Em 2012 ou 2013, o poeta Héctor Hernández leu para mim um poema de Nanao Sakaki chamado Carta de Amor ︎︎︎, que havia sido publicado em um blog. Ele me disse que aquele era de longe o melhor poema que já havia lido. Então salvei aquele poema em algum de meus arquivos. O poema era muito bonito e vinha acompanhado de uma fotografia em preto e branco onde se via Nanao com sua barba branca característica, sentado como uma espécie de poeta zen.
Pouco depois, em 2014, visitei a poeta Ámbar Past em Chiapas, que havia acabado de voltar do Japão. Decidi me inscrever no mestrado em estudos de Ásia e África no Colegio de México. Meu amigo Andrés González me incentivou a estudar a vida e a obra desse poeta chamado Nanao, sobre quem não havia quase nada em espanhol. No mestrado comecei a explorar a poesia de Nanao em inglês e as anedotas sobre sua vida reunidas no livro Nanao or Never. Tive grande sorte quando o poeta e editor Gary Lawless me enviou alguns livros e quando me colocou em contato com amigos de Nanao e com seu editor no Japão, o professor Hara. A ajuda de Gary Lawless foi valiosa, cheguei até a receber um e-mail de Gary Snyder.
A aventura continuou quando comecei a ler Nanao em japonês, e fui visitar alguns lugares do Japão por onde ele certamente caminhou. Todas as coisas foram se conectando sozinhas enquanto seguia o caminho dos amigos de Nanao, e assim pude conhecer o cantor Bob Uchida e o poeta pescador Tetsuo Nagasawa. O que descobri foi que Nanao deixou um legado no Japão, sua poesia está viva em festivais de poesia e música, e entre cantores, poetas e até monges zen que buscam o equilíbrio de uma vida mais saudável e feliz. Acho que seus poemas são lembrados porque falam sobre uma liberdade autêntica diante das ilusões ou das promessas do mundo alienado. Ele nos lembra que todos os caminhos, inclusive os da arte, são livres, mas que caminhar com liberdade exige certo compromisso com um estilo de vida saudável, confiança em si mesmo, conhecer a terra com os pés e algum senso de humor. Acho que Nanao espalhou essa mensagem por todos os lugares onde passou e é isso que ainda está vivo na gratidão e na admiração de seus amigos. Seu ensinamento tem origem no antigo caminho dos mestres budistas e taoístas, mas naquele tipo de ensinamento que não é encontrado nos templos.
Em 2012 ou 2013, o poeta Héctor Hernández leu para mim um poema de Nanao Sakaki chamado Carta de Amor ︎︎︎, que havia sido publicado em um blog. Ele me disse que aquele era de longe o melhor poema que já havia lido. Então salvei aquele poema em algum de meus arquivos. O poema era muito bonito e vinha acompanhado de uma fotografia em preto e branco onde se via Nanao com sua barba branca característica, sentado como uma espécie de poeta zen.
Pouco depois, em 2014, visitei a poeta Ámbar Past em Chiapas, que havia acabado de voltar do Japão. Decidi me inscrever no mestrado em estudos de Ásia e África no Colegio de México. Meu amigo Andrés González me incentivou a estudar a vida e a obra desse poeta chamado Nanao, sobre quem não havia quase nada em espanhol. No mestrado comecei a explorar a poesia de Nanao em inglês e as anedotas sobre sua vida reunidas no livro Nanao or Never. Tive grande sorte quando o poeta e editor Gary Lawless me enviou alguns livros e quando me colocou em contato com amigos de Nanao e com seu editor no Japão, o professor Hara. A ajuda de Gary Lawless foi valiosa, cheguei até a receber um e-mail de Gary Snyder.
A aventura continuou quando comecei a ler Nanao em japonês, e fui visitar alguns lugares do Japão por onde ele certamente caminhou. Todas as coisas foram se conectando sozinhas enquanto seguia o caminho dos amigos de Nanao, e assim pude conhecer o cantor Bob Uchida e o poeta pescador Tetsuo Nagasawa. O que descobri foi que Nanao deixou um legado no Japão, sua poesia está viva em festivais de poesia e música, e entre cantores, poetas e até monges zen que buscam o equilíbrio de uma vida mais saudável e feliz. Acho que seus poemas são lembrados porque falam sobre uma liberdade autêntica diante das ilusões ou das promessas do mundo alienado. Ele nos lembra que todos os caminhos, inclusive os da arte, são livres, mas que caminhar com liberdade exige certo compromisso com um estilo de vida saudável, confiança em si mesmo, conhecer a terra com os pés e algum senso de humor. Acho que Nanao espalhou essa mensagem por todos os lugares onde passou e é isso que ainda está vivo na gratidão e na admiração de seus amigos. Seu ensinamento tem origem no antigo caminho dos mestres budistas e taoístas, mas naquele tipo de ensinamento que não é encontrado nos templos.
O QUE SIGNIFICA O NOVO MUNDO?
O boi é a montanha
O dragão é o dao.
Significa que na cidade vi uma flor
não é uma flor secreta
é a flor de todas os olhares a se olharem
me encontrei com esta flor
e deixei minha biblioteca
para buscar o dragão
para montar o boi.
É a flor das árvores, das pedras, dos rios
é a flor que se levanta da poeira de todas as tardes
é a flor que brota do crescimento do som.

mv você está agora no japão pesquisando o buzoku, um movimento contracultural da década de 1960. no ocidente, pouco se sabe sobre estes grupos de artistas japoneses que viviam em comunidade e cultivavam seu próprio alimento. o que pode nos contar sobre o buzoku? porque vale a pena estudá-lo no presente?
ym Buzoku originalmente significa “As Tribos” (no plural), pois se tratava de um grupo de tribos, ou um circuito de coletivos mais ou menos coordenados na ambiciosa empreitada de “construir uma nova sociedade a partir da casca da antiga”. Com essa visão, em 1967 eles começaram a fundar comunidades e a ensaiar um estilo de vida alternativo à modernidade que se dividia entre os discursos do bloco capitalista e comunista. Retornar à natureza era parte desse estilo de vida.
Os Buzoku não chegaram a essa determinação de maneira espontânea. Primeiro, houve a semente que surgiu da amizade entre Nanao e Gary Snyder, e que amadureceu na rede de poesia e tradução que eles criaram em ambos os lados do Pacífico. Então essa semente germinou em uma primeira etapa que foi o grupo chamado A Academia dos Vagabundos (Bamu Academi), formado por Nanao Sakaki, Sansei Yamao, Kenji Akiba, Tetsuo Nagasawa, entre outros.
A Academia dos Vagabundos se formou em 1965 e era um grupo de poetas amigos que se reuniam na região de Shinjuku, em Tóquio. Nanao, que era o mais velho e que já tinha a experiência de ter caminhado por todo o Japão, era como o líder espiritual do grupo. Muitas anedotas de vida uniram esses poetas. Yamao Sansei resume esse espírito com a frase: “quem é da mesma espécie acaba por se tornar amigo”. A segunda fase surgiu em 1967, quando se criou o Buzoku. Foi quando eles sentiram o chamado para deixar Shinjuku e criarem suas próprias comunidades.
Acho que a primeira coisa que o Buzoku nos ensina é que qualquer comunidade não surge do dia para a noite e depende do trabalho coletivo, da paixão e também da generosidade dos outros. Eles começaram como um grupo de amigos que se organizou para viver em casas alugadas, em terras de familiares ou de alguém que os oferecia, como no caso da longínqua ilha de Suwanose. A segunda é que a construção de uma nova sociedade não acaba nas comunidades, mas é um trabalho de muitos anos e que se transforma com as gerações seguintes. A terceira é que o Buzoku é apenas o ponto de partida da atividade poética, artística e filósofa individual de Sansei Yamao, Tetsuo Nagasawa, Katsusuke Miyauchi e Pon (Kaiya Yamada), cada um por seu próprio caminho. Finalmente, graças à amizade entre Nanao e Snyder, o Buzoku teve uma força muito importante para conectar ambos lados do Pacífico em uma visão comum e de aprendizado mútuo. Ao caminharem juntos no sentido de construir uma nova sociedade, chegaram a uma pergunta-chave para todos nós: como se aprende a viver no planeta terra? Essa pergunta é o título de um poema de Nanao.
Para muitas pessoas, os poetas e artistas do Buzoku são como uma bandeira de consciência, um ponto de partida para quem busca responder a essa pergunta. Acho que se você vem de uma cidade ou de uma cultura desenraizada, esse ponto de partida implica em transformar-se em algo diferente, encontrando quem você realmente é. Nanao Sakaki, Sansei Yamao e Gary Snyder sempre insistiram que o caminho para um futuro diferente se encontra vivo na sabedoria ancestral de diferentes povos originários e das religiões. Também nos deixaram o excelente exemplo de que a poesia cruza fronteiras e que através da poesia é possível voltar a nos sentirmos filhos da terra.
Os Buzoku não chegaram a essa determinação de maneira espontânea. Primeiro, houve a semente que surgiu da amizade entre Nanao e Gary Snyder, e que amadureceu na rede de poesia e tradução que eles criaram em ambos os lados do Pacífico. Então essa semente germinou em uma primeira etapa que foi o grupo chamado A Academia dos Vagabundos (Bamu Academi), formado por Nanao Sakaki, Sansei Yamao, Kenji Akiba, Tetsuo Nagasawa, entre outros.
A Academia dos Vagabundos se formou em 1965 e era um grupo de poetas amigos que se reuniam na região de Shinjuku, em Tóquio. Nanao, que era o mais velho e que já tinha a experiência de ter caminhado por todo o Japão, era como o líder espiritual do grupo. Muitas anedotas de vida uniram esses poetas. Yamao Sansei resume esse espírito com a frase: “quem é da mesma espécie acaba por se tornar amigo”. A segunda fase surgiu em 1967, quando se criou o Buzoku. Foi quando eles sentiram o chamado para deixar Shinjuku e criarem suas próprias comunidades.
Acho que a primeira coisa que o Buzoku nos ensina é que qualquer comunidade não surge do dia para a noite e depende do trabalho coletivo, da paixão e também da generosidade dos outros. Eles começaram como um grupo de amigos que se organizou para viver em casas alugadas, em terras de familiares ou de alguém que os oferecia, como no caso da longínqua ilha de Suwanose. A segunda é que a construção de uma nova sociedade não acaba nas comunidades, mas é um trabalho de muitos anos e que se transforma com as gerações seguintes. A terceira é que o Buzoku é apenas o ponto de partida da atividade poética, artística e filósofa individual de Sansei Yamao, Tetsuo Nagasawa, Katsusuke Miyauchi e Pon (Kaiya Yamada), cada um por seu próprio caminho. Finalmente, graças à amizade entre Nanao e Snyder, o Buzoku teve uma força muito importante para conectar ambos lados do Pacífico em uma visão comum e de aprendizado mútuo. Ao caminharem juntos no sentido de construir uma nova sociedade, chegaram a uma pergunta-chave para todos nós: como se aprende a viver no planeta terra? Essa pergunta é o título de um poema de Nanao.
Para muitas pessoas, os poetas e artistas do Buzoku são como uma bandeira de consciência, um ponto de partida para quem busca responder a essa pergunta. Acho que se você vem de uma cidade ou de uma cultura desenraizada, esse ponto de partida implica em transformar-se em algo diferente, encontrando quem você realmente é. Nanao Sakaki, Sansei Yamao e Gary Snyder sempre insistiram que o caminho para um futuro diferente se encontra vivo na sabedoria ancestral de diferentes povos originários e das religiões. Também nos deixaram o excelente exemplo de que a poesia cruza fronteiras e que através da poesia é possível voltar a nos sentirmos filhos da terra.

mv assim como os rios, as florestas e os oceanos, a poesia desconhece fronteiras?
ym A poesia vem dos rios, das florestas e do oceano, e o que vem de algo que não tem fronteiras em sua essência também não tem fronteiras. As únicas coisas que mudam são as palavras, as texturas gramaticais, os sons, os ritmos e as métricas com que expressamos a experiência. Mas a experiência de mergulhar na água pode ser traduzida com o coração em cada língua, seja dizendo “água”, “atl” ou “mizu”. O que quero dizer é que a poesia articula as formas de nossa experiência de maneiras distintas, mas há um código comum que permanece guardado no coração humano. A poesia é uma linguagem do coração. A diversidade linguística não é uma fronteira, mas sim a benção que embeleza o canto dos diferentes pássaros da alma, o beat do pensar-sentir e também a garantia de que o DNA do coração será transmitido para a próxima geração.

O coração do instante canta
grande é o seu canto
é força, é luz
seu sangue é o tempo
que não prestamos atenção
não há eco em seu canto
mas seu canto se escuta
em cada ser
em todo momento é
o coração brilha
em sua terra.

mv muitos observadores notam a proximidade entre o pensamento dos povos originários das Américas e as ideias orientais vinculadas ao budismo e ao taoísmo, por exemplo. Como você vê essa coincidência transpacífica?
ym Há pouco tempo estive em Fukushima, participando de um festival chamado Mangetsu Matsuri. Lá, músicos, poetas e famílias se reúnem todos os anos para celebrar a lua cheia com comida, artesanato, bebidas, música e artes. Lá conheci o jovem monge zen Tokuun, responsável por um templo no povoado de Minami Soma, muito perto da usina nuclear onde aconteceu o desastre de 2011.
Durante o festival de artes, Tokuun falou sobre sua experiência de vida e sobre como depois do acidente nuclear houve uma aproximação com as nações indígenas dos Estados Unidos para compartilhar orações pela Mãe Terra e transmitir uma mensagem a favor da vida e por uma terra sem contaminação nuclear. Há alguns anos, Tokuun fez parte de uma comitiva japonesa que recebeu Dennis Banks, o ativista e professor da nação Ojibwe que foi rezar e cantar no templo de Minami Soma. Menciono isso como um exemplo, entre muitos, de aliança, diálogo e intercâmbio.
Acho que um dos canais mais importantes de convergência que se abriu é o apelo à consciência ecológica a partir das vozes dos povos originários e das pessoas comuns, e desse canal fazem parte as artes e a poesia. Ainda que ele não conte com os holofotes da agenda ambiental dos governos, é um canal que através da experiência e da sabedoria faz um chamado para mudar o rumo da civilização e retificar nossa maneira de existir modernamente no mundo. Entre os pontos de convergência está a visão de que “nós somos a natureza”. Do lado japonês, essa visão se encontra na visão budista da interconexão e no mundo dos kami, do xintoísmo popular.
Atualmente, estou trabalhando em uma entrevista que fiz com o monge Tokuun e o médico tradicional Pedro Favaron, a quem fiz as mesmas perguntas. Mas eu quero acrescentar algo sobre a contribuição japonesa que não está nessa entrevista, mas que está baseada nas visões de Sansei Yamao e Yoko Yoneyama sobre o xintoísmo popular e o animismo. Xintoísmo popular é o termo que os antropólogos, poetas e pensadores usaram para chamar o animismo local, de raiz popular e majoritariamente camponês, com o objetivo de diferenciá-lo da construção ideológica centralista do xintoísmo do Estado-Nação, que está ligado à casa imperial, e também de outros discursos ideológicos essencialistas da cultura japonesa, como a cultura da “harmonia” com a natureza. O xintoísmo popular seria o entendimento da harmonia com a natureza a partir da visão dos próprios povos e comunidades locais, e é extremamente variado. Quero destacar algumas ideias: a sincronia de todos os aspectos da vida humana com o ritmo da natureza, por exemplo, entre o tempo do calendário e da agricultura; a visão de que existem lugares sagrados como florestas, árvores ou nascentes onde vivem kamis, e uma convicção de que o espírito que existe em toda a vida na Terra, também chamado kami, habita também o coração humano de cada pessoa. A pensadora Yoko Yoneyama disse que esse animismo japonês nos revela uma compreensão do mundo-vida. De acordo com essa compreensão, nós vivemos dentro do mundo-vida e somos parte desse mundo. Acho que isso ressoa as visões dos povos originários americanos, que também são em sua maioria visões muito locais e populares. Para Yoneyama, para Yamao e escritoras como Michiko Ishimure, o animismo popular preserva a visão antiga, profunda e sábia que não se perdeu no Japão moderno.
Ao contrário da América, onde a palavra animismo pode ter uma conotação depreciativa, no Japão o animismo está sendo tomado como um ponto de partida. Acho que se isso frutificar como um guia em um dos países mais desenvolvidos tecnologicamente, seria uma das contribuições mais interessantes dos povos japoneses para o mundo. Algo parecido já acontece nas artes, por exemplo, através da criação de respostas pungentes, críticas e imaginativas nos filmes de anime do estúdio Ghibli. Também acontece em grande parte da literatura japonesa contemporânea que une poesia, espiritualidade e ecologia-observação, como o haiku, que no Japão é um gênero popular e diverso.
A segunda conexão mais importante que vejo é a ênfase na prática e no modo de vida (a experiência cotidiana) como algo que não está separado do conhecimento teórico do mundo. Ou seja, viver de certa maneira é a única forma de poder articular certas formas de compreender o mundo. Sem experiência, a palavra é apenas mentira, como ouvi um mestre maia tsotsil dizer. Essa forma de enfatizar o modo de vida como base de seu conhecimento me parece que conecta ambas visões.
Durante o festival de artes, Tokuun falou sobre sua experiência de vida e sobre como depois do acidente nuclear houve uma aproximação com as nações indígenas dos Estados Unidos para compartilhar orações pela Mãe Terra e transmitir uma mensagem a favor da vida e por uma terra sem contaminação nuclear. Há alguns anos, Tokuun fez parte de uma comitiva japonesa que recebeu Dennis Banks, o ativista e professor da nação Ojibwe que foi rezar e cantar no templo de Minami Soma. Menciono isso como um exemplo, entre muitos, de aliança, diálogo e intercâmbio.
Acho que um dos canais mais importantes de convergência que se abriu é o apelo à consciência ecológica a partir das vozes dos povos originários e das pessoas comuns, e desse canal fazem parte as artes e a poesia. Ainda que ele não conte com os holofotes da agenda ambiental dos governos, é um canal que através da experiência e da sabedoria faz um chamado para mudar o rumo da civilização e retificar nossa maneira de existir modernamente no mundo. Entre os pontos de convergência está a visão de que “nós somos a natureza”. Do lado japonês, essa visão se encontra na visão budista da interconexão e no mundo dos kami, do xintoísmo popular.
Atualmente, estou trabalhando em uma entrevista que fiz com o monge Tokuun e o médico tradicional Pedro Favaron, a quem fiz as mesmas perguntas. Mas eu quero acrescentar algo sobre a contribuição japonesa que não está nessa entrevista, mas que está baseada nas visões de Sansei Yamao e Yoko Yoneyama sobre o xintoísmo popular e o animismo. Xintoísmo popular é o termo que os antropólogos, poetas e pensadores usaram para chamar o animismo local, de raiz popular e majoritariamente camponês, com o objetivo de diferenciá-lo da construção ideológica centralista do xintoísmo do Estado-Nação, que está ligado à casa imperial, e também de outros discursos ideológicos essencialistas da cultura japonesa, como a cultura da “harmonia” com a natureza. O xintoísmo popular seria o entendimento da harmonia com a natureza a partir da visão dos próprios povos e comunidades locais, e é extremamente variado. Quero destacar algumas ideias: a sincronia de todos os aspectos da vida humana com o ritmo da natureza, por exemplo, entre o tempo do calendário e da agricultura; a visão de que existem lugares sagrados como florestas, árvores ou nascentes onde vivem kamis, e uma convicção de que o espírito que existe em toda a vida na Terra, também chamado kami, habita também o coração humano de cada pessoa. A pensadora Yoko Yoneyama disse que esse animismo japonês nos revela uma compreensão do mundo-vida. De acordo com essa compreensão, nós vivemos dentro do mundo-vida e somos parte desse mundo. Acho que isso ressoa as visões dos povos originários americanos, que também são em sua maioria visões muito locais e populares. Para Yoneyama, para Yamao e escritoras como Michiko Ishimure, o animismo popular preserva a visão antiga, profunda e sábia que não se perdeu no Japão moderno.
Ao contrário da América, onde a palavra animismo pode ter uma conotação depreciativa, no Japão o animismo está sendo tomado como um ponto de partida. Acho que se isso frutificar como um guia em um dos países mais desenvolvidos tecnologicamente, seria uma das contribuições mais interessantes dos povos japoneses para o mundo. Algo parecido já acontece nas artes, por exemplo, através da criação de respostas pungentes, críticas e imaginativas nos filmes de anime do estúdio Ghibli. Também acontece em grande parte da literatura japonesa contemporânea que une poesia, espiritualidade e ecologia-observação, como o haiku, que no Japão é um gênero popular e diverso.
A segunda conexão mais importante que vejo é a ênfase na prática e no modo de vida (a experiência cotidiana) como algo que não está separado do conhecimento teórico do mundo. Ou seja, viver de certa maneira é a única forma de poder articular certas formas de compreender o mundo. Sem experiência, a palavra é apenas mentira, como ouvi um mestre maia tsotsil dizer. Essa forma de enfatizar o modo de vida como base de seu conhecimento me parece que conecta ambas visões.

mv da cultura de seus antepassados quéchua, o que segue vivo em você?
ym Há alguns anos, quando estive no Peru, às margens da lagoa de Yarinacocha, pude sentir a voz de meus avós. Então tive a compreensão de que meus avós olhavam a Via Láctea e sabiam cantar para as estrelas. Escutei a voz de minhas avós que carregavam a água do puquio (nascente) e sabiam cantar para a água. Os cantos shipibos, chamados bewa, me mostraram a raiz profunda do meu ser como poeta, uma raiz que vem desde as origens remotas de meu próprio sangue. Agora posso reconhecê-la e sentir-me orgulhoso dela. Essa voz se transforma também no guia de minha poética. Graças à poesia dos povos indígenas eu pude recuperar a consciência de onde venho e a história de meus antepassados quéchuas. Para mim, é um resgate do poeta que sou e do rumo do meu caminho.
Em 2018, minha tia me contou a história do meu avô e de minha bisavó que migraram das montanhas para Lima. Ela me mostrou um documento da fazenda de Rancas, em Cerro de Pasco, onde seus nomes aparecem. Quando comecei a entender que meu avô foi um garoto que falava quéchua e que migrou para Lima, tudo começou a fazer sentido de uma maneira nova, assim como as histórias da minha mãe com as quais eu cresci. Tudo isso foi como recuperar a memória que estava guardada em minha própria herança. Foi como compreender o DNA que segue vivo em mim. Assim como o DNA, posso reconhecer essa herança em algumas expressões e formas de carinho de minha mãe, que é uma cientista com doutorado em bioprocessos vegetais, mas que também sabe cantar para os seres vivos de nossa casa, incluindo a tartaruga Doña Topita que nos acompanha desde que eu tinha 12 anos. Eu pensava que muitas coisas desse tipo eram apenas coisas da minha mãe, mas recentemente compreendi que quando ela me disse que é preciso respeitar as plantas, ela estava expressando a voz de meus próprios avôs e avós quéchuas. São meus avós quem falam na voz de minha mãe, e eu como poeta quero continuar essa voz, pois essa é a voz de Dámaso Yupari, de minha bisavó e dos antigos Yupari dos Andes. De acordo com o registro de Rancas, Yupari é um nome quéchua que eles receberam por serem hábeis com os números e se encarregarem das contas (o sobrenome provém de yupay, que significa contar, e é a raiz de yupana, o ábaco inca). Eu penso que nós Yupari somos contadores, cientistas e também cantadores para Deus e para a natureza.
Em 2018, minha tia me contou a história do meu avô e de minha bisavó que migraram das montanhas para Lima. Ela me mostrou um documento da fazenda de Rancas, em Cerro de Pasco, onde seus nomes aparecem. Quando comecei a entender que meu avô foi um garoto que falava quéchua e que migrou para Lima, tudo começou a fazer sentido de uma maneira nova, assim como as histórias da minha mãe com as quais eu cresci. Tudo isso foi como recuperar a memória que estava guardada em minha própria herança. Foi como compreender o DNA que segue vivo em mim. Assim como o DNA, posso reconhecer essa herança em algumas expressões e formas de carinho de minha mãe, que é uma cientista com doutorado em bioprocessos vegetais, mas que também sabe cantar para os seres vivos de nossa casa, incluindo a tartaruga Doña Topita que nos acompanha desde que eu tinha 12 anos. Eu pensava que muitas coisas desse tipo eram apenas coisas da minha mãe, mas recentemente compreendi que quando ela me disse que é preciso respeitar as plantas, ela estava expressando a voz de meus próprios avôs e avós quéchuas. São meus avós quem falam na voz de minha mãe, e eu como poeta quero continuar essa voz, pois essa é a voz de Dámaso Yupari, de minha bisavó e dos antigos Yupari dos Andes. De acordo com o registro de Rancas, Yupari é um nome quéchua que eles receberam por serem hábeis com os números e se encarregarem das contas (o sobrenome provém de yupay, que significa contar, e é a raiz de yupana, o ábaco inca). Eu penso que nós Yupari somos contadores, cientistas e também cantadores para Deus e para a natureza.
O CÍRCULO DE KREBS
Se falo de minha Mãe me viro para vê-la através de uma colmeia
onde as abelhas construíram buracos em mim,
fórmulas dos pequenos rincões da vida,
fórmulas dos pequenos rincões de uma flor respirando
Então, eu a vejo coberta por todo o mundo enverdecido de sol
e lhe dou a mão de todos meus elos.

mv a ecopoesia é um caminho, no sentido japonês do termo (dō)?
ym Sim, porque o sentido japonês do termo dō (道) é que tudo o que se pratica acaba se convertendo em um caminho. Ou seja, a experiência acumulada se converte ao mesmo tempo em técnicas, conhecimentos e no lugar de encontro com a verdade última que este caminho revela. Dentro das artes, existe o caminho do cultivo das flores, o caminho da espada, o caminho do cultivo de bonsais, o caminho da caligrafia e também o caminho do haicai.
Acredito que a ecopoesia, como uma criação artística baseada na experiência do contato, da abertura, do respeito e do amor à terra se converte em um caminho. Esse caminho é o refinamento da percepção, a abertura da mente-coração (em japonês, kokoro, 心), uma maior amplitude de conhecimento científico e poético da natureza dos lugares que nos rodeiam e uma verdade última que nos mostra o sentimento de paz interior e beleza quando compreendemos que nós somos a poesia da natureza. Tudo isso é muito influente e pode nutrir o compromisso ambiental, a educação artística e a consciência ecológica. Mas talvez o mais importante é que na ideia de dō existe um sentido de cultivo do ser interior e de transformação do eu até que se chegue ao ponto de unidade natural daquilo que em aparência é dual. Ou seja, uma não dualidade entre a pessoa e aquilo que se pratica. Por exemplo, o ponto no qual o mestre calígrafo se faz unidade com o pincel, como se a mesma dança fluísse da tinta para todo o corpo. No caso da ecopoesia, como seria essa dança é uma pergunta artisticamente válida, no mínimo.
Como é a poesia de uma não dualidade do coração com a natureza? Em quantas tradições diversas esse caminho pode ser nutrido? Creio que a ecopoesia pode ser um caminho que cruza fronteiras linguísticas e geográficas, e que ela pode nos guiar no sentido de refinar a própria voz em sintonia com o canto da vida, nos fazer encontrar a imagem poética em todos os momentos como um rio que passa por nossos olhos, e encontrar o ritmo de nossa língua nas batidas do nosso coração. Talvez a verdade de seu caminho seja fazer presente uma linguagem remota e sábia do ser humano que é a natureza.
Acredito que a ecopoesia, como uma criação artística baseada na experiência do contato, da abertura, do respeito e do amor à terra se converte em um caminho. Esse caminho é o refinamento da percepção, a abertura da mente-coração (em japonês, kokoro, 心), uma maior amplitude de conhecimento científico e poético da natureza dos lugares que nos rodeiam e uma verdade última que nos mostra o sentimento de paz interior e beleza quando compreendemos que nós somos a poesia da natureza. Tudo isso é muito influente e pode nutrir o compromisso ambiental, a educação artística e a consciência ecológica. Mas talvez o mais importante é que na ideia de dō existe um sentido de cultivo do ser interior e de transformação do eu até que se chegue ao ponto de unidade natural daquilo que em aparência é dual. Ou seja, uma não dualidade entre a pessoa e aquilo que se pratica. Por exemplo, o ponto no qual o mestre calígrafo se faz unidade com o pincel, como se a mesma dança fluísse da tinta para todo o corpo. No caso da ecopoesia, como seria essa dança é uma pergunta artisticamente válida, no mínimo.
Como é a poesia de uma não dualidade do coração com a natureza? Em quantas tradições diversas esse caminho pode ser nutrido? Creio que a ecopoesia pode ser um caminho que cruza fronteiras linguísticas e geográficas, e que ela pode nos guiar no sentido de refinar a própria voz em sintonia com o canto da vida, nos fazer encontrar a imagem poética em todos os momentos como um rio que passa por nossos olhos, e encontrar o ritmo de nossa língua nas batidas do nosso coração. Talvez a verdade de seu caminho seja fazer presente uma linguagem remota e sábia do ser humano que é a natureza.

mv a poesia pode nos ajudar a habitar este mundo de outra maneira?
ym Sim. Sem dúvida a poesia provoca efeitos em quem a recebe, mas como advertia Gary Snyder, não se trata de um instrumento, mas de um ato natural do ser humano: é da nossa natureza cantar com a voz e com o pensamento. Eu acho que a poesia mais sábia nasce do som do vento, dos pássaros, do tremor da terra e do rugido do trovão. E também de nossas emoções mais sinceras, o amor, a dor, a esperança. O canto nos ensina a falar uns com os outros e com qualquer coisa do mundo desde a raiz mais profunda do nosso ser. Quando digo falar, me refiro à capacidade de articular nossos pensamentos com nossos sentimentos e nossa voz. A poesia é a mestra da fala da humanidade e da civilização, e os bebês e crianças pequenas são altamente poéticos. A civilização é uma forma de vida que articula discursos muito complexos como natureza, humanidade, identidade, nação, direito e mundo com a ajuda da linguagem poética. O problema é que logo nos esquecemos dela, porque pensamos que a teoria e a política são suficientes para sustentar esses discursos e se encarregar deles. Trata-se de um pecado da soberba do ser humano que se esquece que o diálogo de todas as épocas com seu mundo é um diálogo que começa no coração. As pessoas e as sociedades que se esquecem da poesia se esquecem de que estão vivas e acabam vivendo na solidão sombria de um mundo sem vida. Viver e falar são duas faces de uma mesma moeda, a lua e a luz que ela reflete.
Acho que nem a poesia, nem a sua linguagem, nos pertence, mas que ela é um dom recebido de Deus. A poesia é o dom de Deus com o qual ele nos ensina a falar às estrelas, às nuvens e ao crescimento em espiral de uma flor, construindo um sentido de beleza, amor e sabedoria em todas as coisas. O sentido que se constrói vai desde o mais comum ao mais íntimo, e é um sentido carregado de verdade. A poesia expande a verdade no comum e no íntimo. Faz de nós seres que compartilham uma verdade profunda em comum. Em segundo lugar, eu diria que para habitar o mundo de outra maneira devemos também existir no mundo de outra maneira, e a poesia é como uma semente antiga que nos lembra da existência poética à qual aspira o coração humano em qualquer época. É preciso perceber que a existência poética do ser humano não exclui as ciências, nem a filosofia ou a tecnologia. A poesia não compete com essas linguagens, ela é humilde e brota em qualquer momento naquilo que chamamos de inspiração. O poético acontece como o clima na atmosfera e alimenta nosso fogo interior. A poesia está sempre predisposta a inspirar o científico e a brindar as conexões que sejam necessárias para articular seu pensamento, pois somos seres que pensam também com imagens, analogias, fazendo uso de metáforas, jogos e ritmos. A poesia é um tipo de pensamento que tem uma densidade diferente, um pensamento do coração, como afirma o poeta Pedro Favaron em seu livro La Razón Poética.
Nos dias de hoje, uma época de dilemas e angústias produzidas por nosso mundo moderno e civilizado, que entrou em crise ecológica e em esgotamento do sentido da vida que vale a pena viver, a poesia é uma de nossas heranças genéticas mais importantes. Na palavra poética se esconde o DNA do mundo do qual precisamos para aprender a habitar-existir de outra maneira, a partir do diálogo. Mas se realmente quisermos escutar o que a poesia nos ensina neste sentido, devemos restaurar sua dignidade em nossa vida cotidiana, em nossa sociedade, e aceitar o canto e as artes como mestres de nossa mente. Como podemos falar de outra maneira? Essa é uma boa pergunta, uma pergunta humilde, um pedido para que ela nos ensine.
Acho que nem a poesia, nem a sua linguagem, nos pertence, mas que ela é um dom recebido de Deus. A poesia é o dom de Deus com o qual ele nos ensina a falar às estrelas, às nuvens e ao crescimento em espiral de uma flor, construindo um sentido de beleza, amor e sabedoria em todas as coisas. O sentido que se constrói vai desde o mais comum ao mais íntimo, e é um sentido carregado de verdade. A poesia expande a verdade no comum e no íntimo. Faz de nós seres que compartilham uma verdade profunda em comum. Em segundo lugar, eu diria que para habitar o mundo de outra maneira devemos também existir no mundo de outra maneira, e a poesia é como uma semente antiga que nos lembra da existência poética à qual aspira o coração humano em qualquer época. É preciso perceber que a existência poética do ser humano não exclui as ciências, nem a filosofia ou a tecnologia. A poesia não compete com essas linguagens, ela é humilde e brota em qualquer momento naquilo que chamamos de inspiração. O poético acontece como o clima na atmosfera e alimenta nosso fogo interior. A poesia está sempre predisposta a inspirar o científico e a brindar as conexões que sejam necessárias para articular seu pensamento, pois somos seres que pensam também com imagens, analogias, fazendo uso de metáforas, jogos e ritmos. A poesia é um tipo de pensamento que tem uma densidade diferente, um pensamento do coração, como afirma o poeta Pedro Favaron em seu livro La Razón Poética.
Nos dias de hoje, uma época de dilemas e angústias produzidas por nosso mundo moderno e civilizado, que entrou em crise ecológica e em esgotamento do sentido da vida que vale a pena viver, a poesia é uma de nossas heranças genéticas mais importantes. Na palavra poética se esconde o DNA do mundo do qual precisamos para aprender a habitar-existir de outra maneira, a partir do diálogo. Mas se realmente quisermos escutar o que a poesia nos ensina neste sentido, devemos restaurar sua dignidade em nossa vida cotidiana, em nossa sociedade, e aceitar o canto e as artes como mestres de nossa mente. Como podemos falar de outra maneira? Essa é uma boa pergunta, uma pergunta humilde, um pedido para que ela nos ensine.

mv você tem um selo editorial independente chamado cactus del viento. nos fale um pouco sobre ele.
ym Eu defino a Cactus del Viento como uma editora artesanal, digital e ecopoética. É um projeto que toco paralelamente ao meu trabalho como poeta, tradutor e pesquisador. Eu considero a mim mesmo um editor, mas apenas no sentido muito artesanal do ofício. Me sinto confortável assim e sinto que cumpro uma função que é conectar mundos distantes e difundir o que considero valioso.
Assim como para muitos amigos e amigas poetas-editores, a edição artesanal acompanha meus caminhos de vida. Graças a Hernández Montecinos conheci o movimento cartonero latino-americano e juntos fundamos uma cartonera em 2008. Logo também conheci queridos editores artesãos como Simón Pedroz, da Guatemala, e Ámbar Past, de Chiapas. Com eles aprendi muitas coisas sobre a arte de fazer livros artesanais. Quando vivia na Cidade do México, comecei o selo 2.0.1.2. em um ateliê em minha própria casa, utilizando impressoras, carimbos, linhas, tecidos, papéis e papelão. A Cactus del Viento tem a ver com tudo isso e é uma editora itinerante que agora está comigo em Tsukuba, no Japão, embora o ateliê ainda seja na Cidade do México.
O nome da editora vem da frase “kaze no saboten”, “cacto do vento”, que é o título de um diário escrito por Nanao Sakaki. Esse nome faz referência a uma visão que Nanao teve quando esteve no deserto de Pinacate, no México. Nanao gostava muito do deserto, e eu sempre gostei dos cactos. O logotipo da editora é um Kokopelli, um espírito viajante que se encarrega de interligar o mundo e compartilhar flores e sementes.
É um projeto que requer muito esforço, e aprendi a levá-lo a passos lentos. Desde 2020 decidi que os livros da Cactus del Viento também existiriam virtualmente, e graças à iniciativa de Pedro Favaron, agora a editora também publica a coleção Ecopoéticas de la Madre Tierra, além de abrigar o Grupo de Investigaciones Poéticas de la Madre Tierra. Eu gostaria muito de encontrar alguém que queira se juntar à equipe de edição.
Assim como para muitos amigos e amigas poetas-editores, a edição artesanal acompanha meus caminhos de vida. Graças a Hernández Montecinos conheci o movimento cartonero latino-americano e juntos fundamos uma cartonera em 2008. Logo também conheci queridos editores artesãos como Simón Pedroz, da Guatemala, e Ámbar Past, de Chiapas. Com eles aprendi muitas coisas sobre a arte de fazer livros artesanais. Quando vivia na Cidade do México, comecei o selo 2.0.1.2. em um ateliê em minha própria casa, utilizando impressoras, carimbos, linhas, tecidos, papéis e papelão. A Cactus del Viento tem a ver com tudo isso e é uma editora itinerante que agora está comigo em Tsukuba, no Japão, embora o ateliê ainda seja na Cidade do México.
O nome da editora vem da frase “kaze no saboten”, “cacto do vento”, que é o título de um diário escrito por Nanao Sakaki. Esse nome faz referência a uma visão que Nanao teve quando esteve no deserto de Pinacate, no México. Nanao gostava muito do deserto, e eu sempre gostei dos cactos. O logotipo da editora é um Kokopelli, um espírito viajante que se encarrega de interligar o mundo e compartilhar flores e sementes.
É um projeto que requer muito esforço, e aprendi a levá-lo a passos lentos. Desde 2020 decidi que os livros da Cactus del Viento também existiriam virtualmente, e graças à iniciativa de Pedro Favaron, agora a editora também publica a coleção Ecopoéticas de la Madre Tierra, além de abrigar o Grupo de Investigaciones Poéticas de la Madre Tierra. Eu gostaria muito de encontrar alguém que queira se juntar à equipe de edição.

mv para fazer um livro, as árvores precisam morrer.
que tipo de livros vale a pena editar?
que tipo de livros vale a pena editar?
ym Para que qualquer coisa nasça, outra deve morrer. Esse é o princípio da vida, e é válido também para os livros. Se encontrarmos congruência entre os livros e este princípio devemos dizer que os livros são seres com vida. Então, reconhecendo isso, eticamente devemos nos perguntar que tipo de livros vale a pena editar. Para mim, a ética da vida em reciprocidade sugere que, se as árvores nos oferecem seu corpo, é porque desejam que façamos algo de bom e útil para nós. E isso é assim porque a árvore é um dos seres mais generosos que existem e sabe que nós humanos somos seres frágeis, que carecem da mesma resistência e memória. O espírito das árvores é consciente de que o ser humano não tem uma forma de produzir papel a partir de seu próprio corpo, e ainda que existam as tatuagens, as árvores têm nos emprestado sua pele e carne ao gênero humano. Elas nos ensinaram o caminho do papel e do livro como um caminho para que o ser humano tenha sabedoria, alegria e memória. Não para mergulharmos na alienação e na ignorância, nem para editar o que quer que agrade aos nossos desejos mais egoístas.
Nesta perspectiva ética com as árvores, “editar porque se pode” é uma falta de respeito com a Mãe Terra e com as árvores de onde tiramos a polpa e a celulose. Acho que o livro digital está se tornando um meio de alienação e desencadeando um desejo de nos tornamos todos editores sem consciência, movidos unicamente por nossos próprios desejos egoístas e a aparente gratuidade das redes. Por isso, acho que devemos lembrar que a luz e a tela dos computadores também dependem de um combustível que se queima, de um ser mineral que Deus nos oferece para vivermos bem. O que vale a pena editar deve se fundamentar em uma ética humana com a Mãe Terra. No meu ponto de vista, a edição ecológica deveria basear-se no reconhecimento de que o livro não é um “recurso”, nem um mero “instrumento” ou “invenção”, mas um ser vivo, um presente, ou pelo menos uma pele de memória, algo que recebemos para nos ajudar a viver com nossas imperfeições e limites. A pele repleta de traços onde gravamos o que somos, de onde viemos, como vivemos e para onde vamos.
Nesta perspectiva ética com as árvores, “editar porque se pode” é uma falta de respeito com a Mãe Terra e com as árvores de onde tiramos a polpa e a celulose. Acho que o livro digital está se tornando um meio de alienação e desencadeando um desejo de nos tornamos todos editores sem consciência, movidos unicamente por nossos próprios desejos egoístas e a aparente gratuidade das redes. Por isso, acho que devemos lembrar que a luz e a tela dos computadores também dependem de um combustível que se queima, de um ser mineral que Deus nos oferece para vivermos bem. O que vale a pena editar deve se fundamentar em uma ética humana com a Mãe Terra. No meu ponto de vista, a edição ecológica deveria basear-se no reconhecimento de que o livro não é um “recurso”, nem um mero “instrumento” ou “invenção”, mas um ser vivo, um presente, ou pelo menos uma pele de memória, algo que recebemos para nos ajudar a viver com nossas imperfeições e limites. A pele repleta de traços onde gravamos o que somos, de onde viemos, como vivemos e para onde vamos.

De quem são os livros? Diamantes preciosos, eles
não cheiram a flores, musgo ou terra. Cheiram à cidade
agora e sempre, a pele, a vômito, a excremento. Cheiram
a torta de maçã e gasolina. Seus odores e cores provêm
de uma cidade no coração dos homens. Eu procuro o livro
que cheira a terra, musgo e flores. Flor de todas suas flores,
musgo de todos seus musgos, fruto de todos seus frutos.
O livro dos sonhos está no coração dos homens.

mv
o que você tem escrito?
ym Há sete anos escrevo apenas em meus diários. Escrevi em meus diários no Peru, no México e agora no Japão. Escrevo sobre meus sonhos, minhas conversas com Deus, poemas que brotam do meu coração, citações de livros que admiro, e ultimamente versos em japonês e alguns poemas que traduzo. Nesses diários escrevo minhas conversas com Deus por meio da Mãe Terra. Com um lápis, escrevo o que aprendo do passado e coisas para a geração futura, a geração de meu pequeno sobrinho Emiliano, mas escrevo no momento presente. Escrevo e transcrevo coisas que aprendo com meus amigos, meus mestres de meditação, palavras amorosas daqueles que nesta vida me mostraram coisas importantes, coisas que me disseram discretamente, ensinando a viver a vida que vale a pena viver.
mv que planta mexicana você é?
ym Desde criança gosto dos cactos. Do México, gosto especialmente dos gêneros pequenos como Mamillaria e Coryphantha. Também de alguns cactos sui generis como o Astrophytum asterias, Melocactus e o peiote (Lophophora), que, de acordo com uma história rarámuri, antigamente foi uma árvore. Tenho muito respeito ao maguey (Agave) como coração vegetal dos antigos mexicanos junto com o nopal. Menores do que o imponente maguey são as plantas suculentas do gênero Echeveria. Essas plantas, em náhuatl, eram chamadas de tememetla, e se parecem com flores ou estrelas de folhas grossas, algumas têm cores violetas, vermelhas e brancas e vivem em colônias. Algumas delas são endêmicas ao planalto central do México, onde fica a Cidade do México, e são chamadas popularmente de orelhas de burro. Florescem no outono, em outubro, e parecem ter alguma relação simbiótica com certos musgos. Às vezes são lentas, mas também apaixonadas e perseverantes. Não passam despercebidas na paisagem vulcânica de Pedregal. Eu, como poeta, comecei um diálogo com essas plantas quando estudava no Colegio de México e visitava a reserva ecológica. Agora também aprendi a cultivá-la e tenho uma no Japão. Em meu livro Meditaciones del Pedregal, me pergunto se as orelhas de burro alcançaram a iluminação.
mv
que animal japonês você é?
ym O suzume (雀), ou pardal japonês, é um pássaro comum no Japão. No prédio em que moro, entre as telhas, vivem quatro ou cinco suzumes. Eles são muito falantes quando está ensolarado e, durante o verão, quase não ficam no prédio porque costumam passear no parque ou nos jardins. No inverno são mais caseiros, e posso escutar suas conversas nas manhãs. Algo que aprendi morando com esses vizinhos é que nas manhãs frescas de neblina, eles descem até o estacionamento em frente ao prédio para beber o orvalho depositado nas folhas da grama. Tenho certeza de que entre o orvalho e o suzume existe uma bela história japonesa, talvez algum haiku.
Uma história de seres pequenos que nos ensinam qual é a verdadeira beleza do mundo é a seguinte: há dois anos estive nas montanhas da cidade de Gunma, com meu amigo Shinnosuke e um amigo dele. De manhã, quando saí para observar o bosque, peguei um tambor tradicional nativo-americano que encontrei na casa onde nos hospedamos e vi que havia um pardalzinho parado na ponta de um pinheiro muito alto. Esse pardalzinho era diferente dos pardaizinhos do meu prédio. Esse pardalzinho selvagem começou a cantar e me ensinou durante toda a manhã um ritmo que aprendi a tocar no tambor. Esse ritmo é o único que sei tocar, mas posso dizer que é um ritmo do qual não esquecerei, porque foi o pardalzinho parado na ponta de um pinheiro nos bosques de Gunma que me ensinou.
Uma história de seres pequenos que nos ensinam qual é a verdadeira beleza do mundo é a seguinte: há dois anos estive nas montanhas da cidade de Gunma, com meu amigo Shinnosuke e um amigo dele. De manhã, quando saí para observar o bosque, peguei um tambor tradicional nativo-americano que encontrei na casa onde nos hospedamos e vi que havia um pardalzinho parado na ponta de um pinheiro muito alto. Esse pardalzinho era diferente dos pardaizinhos do meu prédio. Esse pardalzinho selvagem começou a cantar e me ensinou durante toda a manhã um ritmo que aprendi a tocar no tambor. Esse ritmo é o único que sei tocar, mas posso dizer que é um ritmo do qual não esquecerei, porque foi o pardalzinho parado na ponta de um pinheiro nos bosques de Gunma que me ensinou.

mv o que você tem plantado?
ym Com o grupo de horticultura do qual participo, em outubro, semeamos soramame (favas), hakusai (couve chinesa) e tassai. Nos reunimos todos os sábados, se o clima estiver bom, para trabalhar em nossa horta (hatake) que fica ao lado dos dormitórios da Universidade de Tsukuba, em Ichinoya. Foi aqui onde mais aprendi sobre as plantas comestíveis do Japão e sobre como se cultiva o hatake, semeando com meus companheiros, capinando e colhendo.

mv o que você tem colhido?
ym Eu vivo em Tsukuba, no município de Ibaraki, uma das zonas agrícolas mais férteis da região de Kanto. Esta é a temporada da colheita de satsumaimo (batata doce) e da apanha de castanhas, caquis e peras. Em nosso grupo de horticultura tivemos uma boa safra de batata doce. Também colhemos alguns tubérculos meio selvagens chamados kikuimo, algumas folhas da planta ashitaba e alguns amendoins que em japonês são chamados de rakkasei.
