com Gary Lawless
uma corrente de água quente sob um lago congelado. uma rápida conversa com gary lawless é como um breve mas intenso fluxo, jato veloz que movimenta atmosferas estagnadas. na gelada costa nordeste dos estados unidos, em uma fazenda no estado do maine, ele vive ao lado de sua companheira beth leonard. uma vida de poesia e natureza que se desencadeou quando, ao terminar um ciclo de estudos, lawless decidiu pegar carona até a califórnia para passar um ano como aprendiz de seu poeta favorito: gary snyder. foi na companhia de seu amigo snyder, no início da década de 70, que lawless encontrou e se deixou afetar por poetas como lawrence ferlinghetti, allen ginsberg, nanao sakaki, além de etnobotânicos, militantes biorregionalistas, xamãs nativo-americanos, budistas e toda sorte de experimentadores contraculturais.
de volta ao maine, com beth leonard, abriu a editora blackberry books press e a livraria gulf of maine books. os dois passaram a viver na fazenda que antes pertencia aos escritores henry e elizabeth benston, às margens do lago damariscotta.
lawless já lançou mais de 20 livros de poemas. nesta mataviva, ele conta um pouco sobre a paisagem em que cultiva seus recém-completos 70 anos de idade, e tem seus poemas – canções que migram como pássaros – vertidos pela primeira vez para o português.
de volta ao maine, com beth leonard, abriu a editora blackberry books press e a livraria gulf of maine books. os dois passaram a viver na fazenda que antes pertencia aos escritores henry e elizabeth benston, às margens do lago damariscotta.
lawless já lançou mais de 20 livros de poemas. nesta mataviva, ele conta um pouco sobre a paisagem em que cultiva seus recém-completos 70 anos de idade, e tem seus poemas – canções que migram como pássaros – vertidos pela primeira vez para o português.


mataviva os rios estão em constante movimento. até mesmo as pedras estão sempre se movendo, como você disse em uma entrevista recente. a poesia e a linguagem também são forças em movimento? elas ignoram fronteiras?
gary lawless eu tenho uma definição ampla a respeito da linguagem, já que a entendo como as formas com as quais as coisas se comunicam – não só a linguagem humana, falada – mas a linguagem química das plantas – a linguagem do movimento, a linguagem dos corpos se movendo, a linguagem dos olhos e do coração, a linguagem falada por outras espécies.
as línguas humanas evoluem, as línguas indígenas desaparecem e com elas também desaparecem muitas informações sobre viver na terra – as culturas dominantes substituem as línguas locais – conforme as espécies vão se extinguindo nós perdemos a oportunidade de entender e aprender com suas línguas (qual é a língua de uma planta que chama um polinizador?)
sim, a linguagem se move, flui, é bloqueada, escapa pelos subterrâneos, reaparece – as fronteiras são os limites do que entendemos – muitas pessoas na região onde você está não irão entender meus poemas se eles só existirem em inglês, da mesma forma como eu não vou entender poemas em português, em espanhol, em línguas indígenas da amazônia, etc – e essas são apenas as linguagens humanas – e se pudéssemos entender as canções das baleias, dos pássaros, e se pudéssemos entender as formas com que as árvores se comunicam sob a superfície da terra, ou o que os micróbios que vivem conosco estão comunicando?
os poemas, as línguas e as narrativas vivem através do tempo, através da história – nós ainda conservamos sabedorias e narrativas em nossas línguas que vieram de muito tempo atrás, mesmo que hoje elas sejam apenas resquícios ou pedacinhos – pinturas nas paredes das cavernas, pedaços de poemas de safo encontrados em tecidos, são como a sabedoria, os sentimentos, ideias, emoções que esperamos passar adiante em um poema, canção, conto, pintura, dança, etc – nós nos movemos através do tempo, nós nos movemos como água, nossas vidas fluem – e agora é claro que com os computadores nós podemos cantar nossos poemas uns aos outros através de longas distâncias, fazer amigos em novas culturas, novas línguas, aprender uns com os outros, e seguir adiante – eu acredito que todo o universo está constantemente falando, e que a comunicação é uma história longa, complexa e bonita – nós vivemos nela, sem escutar e entender quase nada – mas alguns poetas, artistas, músicos, dançarinos… eles estão escutando, tentando escutar, e compartilhando o que entendem – o que os seus corações escutam –
as línguas humanas evoluem, as línguas indígenas desaparecem e com elas também desaparecem muitas informações sobre viver na terra – as culturas dominantes substituem as línguas locais – conforme as espécies vão se extinguindo nós perdemos a oportunidade de entender e aprender com suas línguas (qual é a língua de uma planta que chama um polinizador?)
sim, a linguagem se move, flui, é bloqueada, escapa pelos subterrâneos, reaparece – as fronteiras são os limites do que entendemos – muitas pessoas na região onde você está não irão entender meus poemas se eles só existirem em inglês, da mesma forma como eu não vou entender poemas em português, em espanhol, em línguas indígenas da amazônia, etc – e essas são apenas as linguagens humanas – e se pudéssemos entender as canções das baleias, dos pássaros, e se pudéssemos entender as formas com que as árvores se comunicam sob a superfície da terra, ou o que os micróbios que vivem conosco estão comunicando?
os poemas, as línguas e as narrativas vivem através do tempo, através da história – nós ainda conservamos sabedorias e narrativas em nossas línguas que vieram de muito tempo atrás, mesmo que hoje elas sejam apenas resquícios ou pedacinhos – pinturas nas paredes das cavernas, pedaços de poemas de safo encontrados em tecidos, são como a sabedoria, os sentimentos, ideias, emoções que esperamos passar adiante em um poema, canção, conto, pintura, dança, etc – nós nos movemos através do tempo, nós nos movemos como água, nossas vidas fluem – e agora é claro que com os computadores nós podemos cantar nossos poemas uns aos outros através de longas distâncias, fazer amigos em novas culturas, novas línguas, aprender uns com os outros, e seguir adiante – eu acredito que todo o universo está constantemente falando, e que a comunicação é uma história longa, complexa e bonita – nós vivemos nela, sem escutar e entender quase nada – mas alguns poetas, artistas, músicos, dançarinos… eles estão escutando, tentando escutar, e compartilhando o que entendem – o que os seus corações escutam –
Quando os animais vierem até nós,
pedindo ajuda
saberemos o que estão dizendo?
Quando as plantas falarem conosco,
em sua delicada e bela linguagem
saberemos como respondê-las?
Quando a própria terra
cantar para nós em sonhos
saberemos acordar, e agir?
mv você mora no estado do maine, em uma fazenda no município de nobleboro, mas é dono de uma livraria em brunswick, que fica há cerca de 55 quilômetros de distância. você viaja diariamente por esse trecho? o que você observa e escuta pelo caminho?
gl eu vivo na fazenda e viajo 35 milhas até a cidade onde minha esposa beth e eu temos uma livraria há 41 anos. nós vivemos no litoral do maine, na costa nordeste dos estados unidos – nós cruzamos dois rios de tamanho razoável e dois menores até chegar à loja. às vezes vemos o oceano. há pássaros maravilhosos, especialmente perto da água. nós passamos por atalhos onde as camadas das rochas expostas nos contam a história geológica desta região. podemos ver como as geleiras esculpiram os lugares onde vivemos hoje.
neste momento muitas árvores e flores estão desabrochando – há muitos pássaros, alguns voltando de viagens migratórias, e as abelhas circulam pelas flores. nós vivemos em um lago onde muitos milhares de peixes – alosas cinzentas – chegam nadando do oceano durante o mês de maio – nossa cidade gastou um milhão de dólares para criar uma “escada de peixes” para que os peixes migratórios possam nadar do oceano até o lago, com pontos de descanso pelo caminho e com redes cobrindo essas piscinas de descanso para que as águias, gaivotas e águias-pescadoras não peguem os peixes. parece uma cerimônia ancestral, quando os peixes retornam.
neste momento muitas árvores e flores estão desabrochando – há muitos pássaros, alguns voltando de viagens migratórias, e as abelhas circulam pelas flores. nós vivemos em um lago onde muitos milhares de peixes – alosas cinzentas – chegam nadando do oceano durante o mês de maio – nossa cidade gastou um milhão de dólares para criar uma “escada de peixes” para que os peixes migratórios possam nadar do oceano até o lago, com pontos de descanso pelo caminho e com redes cobrindo essas piscinas de descanso para que as águias, gaivotas e águias-pescadoras não peguem os peixes. parece uma cerimônia ancestral, quando os peixes retornam.

mv o que você tem plantado?
gl aqui é o começo da primavera. nós vivemos em uma velha fazenda, mas somos livreiros – então na verdade apenas plantamos para nós mesmos e para as criaturas que nos cercam. na última primavera plantamos alho. agora vamos começar a plantar sementes em nossa horta de vegetais e em nossa horta de ervas. nós temos 17 macieiras (8 variedades - maçã ancestral/heirloom), além de pêssegos, peras, mirtilos, amoras, framboesas, sabugueiros (elderberries) – em breve vou plantar mais mudas de sabugueiro, alguns castanheiros americanos, e dois marmeleiros. nos últimos dias plantei feijões, ervilhas, abobrinhas, abóbora e couve kale.
além disso, tenho plantado plantas nativas que são usadas pelas abelhas, os pássaros, as borboletas – plantas que elas procuram por aqui – asclépia, asters, e tenho mantido os pastos abertos para os amigos voadores que querem usar as plantas que crescem por lá.
além disso, tenho plantado plantas nativas que são usadas pelas abelhas, os pássaros, as borboletas – plantas que elas procuram por aqui – asclépia, asters, e tenho mantido os pastos abertos para os amigos voadores que querem usar as plantas que crescem por lá.
PLANTANDO PARA ABELHAS E BORBOLETAS
o ar estava aqui
antes de nós
a água, a pedra,
o inseto sem nome
as tribos nômades
da terra e do céu
todo dia eu
abençoo a aster
abençoo a asclépia
abençoo o solidago
canto para as abelhas
as borboletas-monarca as
canções nascentes dos pássaros
todo dia uma elegia
uma canção fúnebre
o coração grita de
amor e perda
luto e alegria
os pássaros voando atravessam
o coração, subindo.

mv o que você tem colhido?
gl como é primavera, não há muito para colher – a não ser pelo fato de que acabamos de instalar um sistema de energia solar, então agora nossa fazenda consegue energia colhendo o sol. além disso, estou cortando algumas árvores mortas para fazer lenha para os fogões. mas é tempo de novos começos –
BOAS NOTÍCIAS
Estradas desaparecem, e as renas perambulam.
O castor enjoa daquilo, alcança
o lado de cima, através do gelo,
agarra os pés do caçador e
o arrasta para baixo.
Lobos voltam naturalmente,
circulam o Palácio do Governo,
uivam para os jornalistas esportivos e
mijam nos quadriciclos.
Árvores crescem por toda a parte.
As máquinas param,
e o ar está cheio de cantos de pássaros.
Mais do que possuir
é entrar no espírito
o mundo todo aberto,
animais migram por mim,
cruzam o rio, voam
para casa.
PROCURANDO POR RIOS
Procurando por rios. As rochas estão cheias de
luz. Água clara. Ele esfregou as folhas
entre suas mãos, voou sobre as árvores.
Eu imitei, agradeci. Isto no Picadilly Head.
Onde as estradas terminam. Folhas verdes em um galho
esguio. A missa, ainda em francês. Ovelhas na estrada,
de novo. Um jardim cheio de ossos. Quantos cachorros. Quantas
pegadas, na neve.
Brilho da lua, escamas de peixe, diamantes de gelo. Levantando
meus braços no oceano, a água, caindo ao meu redor,
se soltando das redes e linhas, brilhando enquanto cai.
Minhas mãos para o céu, a linha nas profundezas.
Eu sou o vento que sopra sobre o mar.
Eu sou a onda do mar.
Muitas vozes, sussurrando. Muitas
direções, muitas palavras para a neve. As palavras se esfregam
contra minha pele como o vento, palavras empilhadas sobre minha
cabeça como pedras. Cada som traz uma notícia. Canções
vêm até mim em sonhos. Pássaros falam enquanto voam
sobre mim. Tudo fala. Nós vivemos uma conversa
interrompida de vida e luz, luz
filtrada através das rochas, através da névoa,
gelo brilhante, pelos quentes, pele quente.
Às vezes eu escuto vozes, eu sonho.
Às vezes eu não sei se sou rena ou
baleia, homem ou mulher, às vezes eu não
sei mas eu sou a coisa toda, oceano,
árvores e céu – eu
desci como um corvo e dancei sobre a terra.
Esqueço muito. Canções que conheci tão bem.
Eu as esqueço. No meu tempo tudo era canção
e histórias. Você entrava em uma casa e alguém
cantava uma canção, e depois outra pessoa cantava.
Todo tipo de canção. Todas canções contavam
histórias, boas canções sobre tempestades, mulheres,
assassinatos em navios, tempos difíceis. Havia sempre
uma canção para os tempos difíceis. Isso era tudo
o que havia para passar o tempo. Você cantava uma
atrás da outra, e o que você não sabia,
você inventava. Eu nunca foi bom naquilo, mas
os velhos costumavam saber algumas canções...
“You may think I’m goofy
but the man in the moon is a Newfy.
He’s sailing home to glory
in a great big silver dory.”
Nós pescávamos em um barco dóri naquela época. Tudo era
dóris e redes, iscas e linhas de mão. Nós não tínhamos
motores ainda. O vento....
Eu gosto de me sentar nos degraus, sentir o vento,
ver os pássaros, cheirar o oceano. Eu não gosto
quando estou dentro. Eu não me sinto conectado
a nada. Eu sinto que estou perdendo algo,
que algo está acontecendo, sem mim.
Beth acabou de pintar os degraus de azul. Eu gosto de
sentar lá fora, escutar e esperar. Eu gosto de sentir
que sou parte de algo.
Não é solitário quando chove, água na floresta,
Não é triste.
Meus braços estão cansados de peixes, redes e remos,
meus ombros doem, meus quadris, minhas mãos cansadas
de água gelada, corda, os movimentos da faca,
meus olhos estão cansados da água brilhante, do gelo,
ver as linhas descendo, encarar a neve, eu quero
ser coberto por água. Eu quero afogar em meu
sono, a luz desaparecendo, acima, pássaros
mergulhando, na escuridão, eu quero afogar
em meu sono.
Você quebra a superfície, quebra a superfície e
cai em algum novo tipo de luz.
Noite passada a lua nasceu vermelha.
Os cachorros estão latindo.
No crepúsculo o céu estava cheio de pássaros.
Eu fiquei pensando sobre
todos os lugares onde nunca estive.

com Lucina
da fronteira, pelas estradas, lucina é uma artista nômade. nascida em cuiabá, perto de muitos rios, percorreu muitos caminhos, até chegar ao rio de janeiro. e foi neste rio que começou, pouco a pouco, a trabalhar com seu próprio canto.
presença ativa nos encontros musicais dos anos 1960, com o recrudescimento da ditadura civil-militar, depois de conhecer luhli e luiz fernando, abandonou a cidade para viver em mangaratiba, litoral carioca. assim, na década de 1970, perto da mata e do mar, longe dos circuitos das gravadoras, da moral, inventou discos e uma maneira de existir singular. “não compactuar com a loucura do poder é atitude política”, comentou em uma recente entrevista sobre este momento decisivo.
ao lado de luhli e luiz fernando, durante mais de vinte anos, liberou-se das gravadoras, antes mesmo da chamada musica independente; incorporou os tambores da umbanda aos palcos; afirmou um amor livre e em movimento.
desde o início dos 2000, lucina expande em carreira solo, o que no seu caso é estar junto de muita gente, de amizades, passando por plantas e bichos soltos até águas correntes. as canções de lucina estão disponíveis nas plataformas e nas redes, nas vozes de artistas parceiros como alzira e, ney matogrosso, e no belo documentário yorimatã feito por rafael saar ︎︎︎.
seu último registro, Canto de Árvore (2019), celebra o movimento, o canto que se desloca, o rio seguindo, sem parar.
presença ativa nos encontros musicais dos anos 1960, com o recrudescimento da ditadura civil-militar, depois de conhecer luhli e luiz fernando, abandonou a cidade para viver em mangaratiba, litoral carioca. assim, na década de 1970, perto da mata e do mar, longe dos circuitos das gravadoras, da moral, inventou discos e uma maneira de existir singular. “não compactuar com a loucura do poder é atitude política”, comentou em uma recente entrevista sobre este momento decisivo.
ao lado de luhli e luiz fernando, durante mais de vinte anos, liberou-se das gravadoras, antes mesmo da chamada musica independente; incorporou os tambores da umbanda aos palcos; afirmou um amor livre e em movimento.
desde o início dos 2000, lucina expande em carreira solo, o que no seu caso é estar junto de muita gente, de amizades, passando por plantas e bichos soltos até águas correntes. as canções de lucina estão disponíveis nas plataformas e nas redes, nas vozes de artistas parceiros como alzira e, ney matogrosso, e no belo documentário yorimatã feito por rafael saar ︎︎︎.
seu último registro, Canto de Árvore (2019), celebra o movimento, o canto que se desloca, o rio seguindo, sem parar.



PEDRA DE RIO
— Luhli, Lucina
sequei o meu pranto
enxuguei nesse sol
e nele um rio virei
pedra de rio
pedra de cais
pedra de casa e de pó
pedra de muro e de mó
pedra rolada de rio
beijo a testa
afago a morte encurvada
cansada de tanto tempo viver
e no meu rio
rio de pedra navego
meu barco voa sem vela
rio e navego sozinho
perdido rio
de você, ah meu rio
você é meu rio
e eu, pedra de rio
perdido rio
ah meu rio
beijo a testa
afago a morte encurvada
cansada de tanto tempo viver
e no meu rio
rio de pedra navego
meu barco voa sem vela
rio e navego sozinho
perdido rio
de você, ah meu rio
você é meu rio
eu, pedra de rio
perdido rio
de você, ah meu rio
você é meu rio
e eu, pedra de rio
perdido rio
ah meu rio
︎︎︎

mataviva canto de árvore é o nome do seu disco recente. na parceria com o poeta arrudA, a árvore é também a madeira de um barco. você tem raízes e é nômade, se desloca sempre. quais são os seus movimentos agora?
lucina Sinto fluxos internos oscilantes que geram um processo de criação e elaboração intensas. Esse movimento ganha sentido ao ser jogado no mundo. Acho que o atual desafio é achar um jeito de encontrar o outro sem sair da gente.

mv alguns cientistas têm chamado de www (wood wide web) a conversa entre as raízes das árvores por meio dos fungos. mas, antes da ciência, alguns artistas e poetas já sabiam dessa rede. a música pode ser uma possível conversa com as plantas?
l Sim, na medida em que é frequência. Todos os reinos (animal, vegetal, mineral, elemental) falam. Quando a gente se pensa um ser separado das outras formas de vida, paramos de ouvir.
mv como você descreveria as diversas maneiras de comunicação com estas outras formas de vida?
l Quando ouvimos, paramos, e é aí o lugar onde passamos a perceber esse mundo de fora e de dentro em simbiose. Tem uma música, um ponto pra Oxalá que fiz com Luli há bastante tempo que diz: “parei pra ver pedra crescer / parei pra ouvir pedra chorar / e ouvi no eco da montanha na voz do trovão a risada tamanha / como um brado de Oxalá”.

mv um poeta que gostamos, michael mcclure, fez leituras dos seus poemas para leões︎︎︎. você já cantou ou colocou algum disco para um bicho ouvir? ou em um jardim ou floresta para folhas e flores? ou para algum rio?
l Só não cantei para leões…


mv você vê semelhanças entre as relações que você estabelece com as amizades e as que você constrói com as águas, as plantas e as pedras com que você convive?
l Sim, com todas formas o processo de ouvir, de falar, de dar e receber, de regar, de perceber é o mesmo.
mv como se dá essa relação entre a mata e o seu trabalho como compositora?
l Morei muito tempo em sítio com uma mata vigorosa bem perto. A minha música cresceu dentro dessa sonosfera.
mv
o que você tem plantado?
l Planto ervas e sons.

GIRA DAS ERVAS
— Luhli, Lucina, Mario Avellar, Maria Maria
Aroeira aroeira
Artemísia arruda alecrim erva cidreira
Alfazema e manjericão
Erva-doce urucum e dente de leão
Aroeira aroeira
Dobradinha hortelã camomila e cambuí
Dormideira e buriti
Cana do brejo chá habu jurubeba e imbiri
E aroeira
Tamarindo e tatuiá
Sassafrás losna funcho alcaçuz e manacá
Louro e malva e jambolão
Juzaeiro jucá jatobá capim limão
E aroeira
Aroeira aroeira
Artemísia arruda alecrim erva cidreira
Alfazema e manjericão
Erva-doce urucum e dente de leão
Aroeira e manjerona
Umbaúba urtigão fedegoso e mamona
Vassourinho e jequibá
Girassol catuaba café e guaraná



l Minhas novas canções.
mv o que tem ouvido?
l Silêncios.


mv você, luhli e luiz fernando, no meio da ditadura, inventaram várias experiências de liberdade, resistindo à censura, ao mercado, à moral. quais são os frutos desse caminho para os artistas de hoje?
l A gente simplesmente seguiu a nossa verdade. O panorama atual é praticamente um beco com saída pra quem tem coragem de experimentar.
CANTO DE ÁRVORE
— arrudA, Lucinarange meu barco
um canto de árvore
e da noite infinita
acolho todas as duvidas
me guiam estrelas
que os homem dizem mortas
e aos olhos sem cais ressuscitam
range meu barco
um canto de árvore
sou de sal e madeira e da noite infinita
acolho as manhãs
o amor
e as tempestades
range meu barco
um canto de árvore ︎︎︎


A DÁDIVA DÍVIDA!
— Lucina, Joãozinho Gomes
a dádiva da vida divida comigo
a música devida divida comigo
a divindade em vida divida comigo
a dívida indevida divida comigo
o gosto da comida divida comigo
a profecia lida divida comigo
à hora da partida divida comigo
a cura da ferida divida comigo.
o beco sem saída, o velho amigo,
a febre contraída, o mor perigo,
o trago na bebida, o pão de trigo,
a dor da despedida, o seu abrigo
o medo da intriga, o doce figo
a proteção da figa, o terço antigo
a nota da cantiga, o novo artigo,
o peso da fadiga, o ombro amigo...
a dádiva da vida divida comigo
a dúvida da diva divida comigo
a bola dividida divida comigo
a dívida vencida divida comigo
a asa na subida divida comigo
a sétima avenida divida comigo
a veste colorida divida comigo
a avidez de vida divida comigo
com Nicolas Behr
entre as folhas das plantas, dos livros e dos cadernos, nicolas behr vive, aos 62 anos, no cerrado. behr ficou conhecido em brasília no final dos anos 1970, a partir da maneira livre como escreveu e circulou a sua poesia pelas ruas da cidade. em 1978, pouco tempo depois do seu primeiro livro, Iogurte com Farinha, foi preso, durante a ditadura civil-militar, acusado de obscenidade. proibido de publicar, não hesitou em escrever poemas em telhas, série conhecida como O Que Me Der Na Telha.
apesar da diminuição do ritmo de escrita, nos anos 1980 inventou grupos de militância ecológica fundamentais na capital federal. na década de 1990 retomou o lançamento de seus poemas e, ao lado de alcina ramalho, criou o viveiro de mudas Pau-Brasília︎︎︎
deste modo, preparando futuras plantas e poemas, o poeta que saiu aos dezesseis anos do mato grosso rumo a brasília (a mudança feita em uma brasília, segundo ele) segue resistindo e experimentando linguagens livres, verbais ou não. como ele mesmo diz a seguir, “antes de falar com as plantas eu as adubo bem e as rego. aí falo. planta não gosta de gente tagarela”.

mataviva “o flamboyant / da casa da fazenda / enraizou em mim” ︎︎︎ este é o começo de um dos seus poemas. como a pessoa poeta pode se tornar um solo fértil para as plantas?
nicolas behr Se você respira, agradeça às plantas. Tudo muito automatizado no nosso planeta, quase seres autômatos que somos, esquecemos de onde vem o nosso oxigênio. Por isso, se você respira, agradeça às plantas (no fundo elas não precisam de nós. Nós é que precisamos delas. Se num instante as plantas desaparecerem do planeta a humanidade morre em menos de um mês. Se num instante a humanidade desaparecer por completo, que alívio para as plantas).

mv o que você tem plantado?
nb No sítio sementes de palmeiras... Da semente até você ter o “produto” planta, no mínimo 3 anos. Aí depois de tudo isso a pessoa compra a muda e deixa morrer, por falta de água.
mv o que você tem colhido?
nb Tenho colhido alegrias, momentos de êxtase, ao ver a palmeira que plantei, pequena, dar seus primeiros frutos. É o momento-surpresa, é o momento-quase-orgasmo. É o inesperado, que te desliga deste mundo estressante e te remete a um outro, onde você recarrega as energias. Por isso precisamos tanto das plantas, o contato com o selvagem, com o verde, nem que seja numa samambaia pendurada na sua varanda.
HOW TO SHIT IN A FOREST
que maçante é viver em sociedade
já percebestes? as regrinhas...
o corpo social em movimento,
percebestes?
principalmente de manhã cedo
todo mundo indo pro trabalho
existe algo mais maçante
que o trabalho?
bom mesmo é andar nu pela floresta
comer frutos silvestres
e cagar ali mesmo observando
os decompositores – besouros rola-bosta –
destruírem sua mais fina obra
HOW TO SHIT IN A FOREST
que maçante é viver em sociedade
já percebestes? as regrinhas...
o corpo social em movimento,
percebestes?
principalmente de manhã cedo
todo mundo indo pro trabalho
existe algo mais maçante
que o trabalho?
bom mesmo é andar nu pela floresta
comer frutos silvestres
e cagar ali mesmo observando
os decompositores – besouros rola-bosta –
destruírem sua mais fina obra
que maçante é viver em sociedade
já percebestes? as regrinhas...
o corpo social em movimento,
percebestes?
principalmente de manhã cedo
todo mundo indo pro trabalho
existe algo mais maçante
que o trabalho?
bom mesmo é andar nu pela floresta
comer frutos silvestres
e cagar ali mesmo observando
os decompositores – besouros rola-bosta –
destruírem sua mais fina obra



mv em brasília, no final dos anos 1970, durante a ditadura civil-militar, você foi preso, processado, proibido de publicar. e como resistência escreveu poemas em telhas frescas depois queimadas. como apareceu a ideia de “o que me der na telha”?
nb Rapaz, me veio uma daquelas leituras sobre a escrita cuneiforme, dos sumérios, que escreviam em argila. Mas olha, escrever em telhas frescas, deixá-las queimar no forno e depois levá-las ao grande público, que doidera. Quebravam no transporte (no ônibus), e aí me lembro... É na juventude que cometemos as maiores e mais lúcidas loucuras.
mv sobre seus poemas, leonardo fróes comenta que eles surpreendem o olhar desprevenido e são “tão contundentes quanto uma pichação feita às pressas para escapar da polícia”. como seguir surpreendendo, em um momento em que além das polícias, as redes e os algoritmos controlam cada vez mais os olhares?
nb Poesia é resistência, sempre será. O tempo não para, novas mídias, novas linguagens, novas vontades. Mas pra mim ainda “vale o que está escrito”. O livro, de papel, não pode ser deletado. A nuvem evapora, chove, muda de lugar.
O livro é a invenção perfeita. Extensão da nossa memória, como dizia Borges. Os algoritmos são pura ilusão. Seguidor não é leitor, curtida não é leitura.
O livro é a invenção perfeita. Extensão da nossa memória, como dizia Borges. Os algoritmos são pura ilusão. Seguidor não é leitor, curtida não é leitura.

os três poderes
são um só
o deles
mv você foi um dos inventores do MOVE (movimento ecológico de brasília). como é a sua relação com as raízes e os movimentos?

nb Na época, início dos anos 80, eramos taxados de loucos, hippies, irresponsáveis. Aí está o Comitê Internacional do Clima pra dizer que não estávamos tão errados assim. Estamos cavando nossa própria sepultura, por isso esse desespero de chegar a Marte e instalar uma colônia humana lá, para nos salvar da extinção.
mv com sua companheira alcina, você inventou a “pau-brasília”. qual a relação entre a escrita e o dia-a-dia no trabalho com as mudas?
nb O viveiro de plantas é o meu fio-terra. E o poeta precisa de um fio-terra, senão pira, enlouquece. Por isso, aconselho sempre que vejo um poeta que começa a viver radicalmente em “estado de poesia” que passe na lotérica pra jogar na megasena, passe no banco, veja o estrato e converse com o gerente. Passar no posto de gasolina e calibrar o pneu do carro. Tudo que aterra o poeta é bom. Chega de poeta ficar se matando.
a árvore cresce
sobre o chão da página
a palavra se fixa na terra
árvore e palavra:
ambas enraizadas em mim

enfim, era preciso saber
quanto cimento será gasto
numa ponte por onde ninguém
passará de mãos dadas
enfim, era preciso saber
quanto cimento será gasto
numa ponte por onde ninguém
passará de mãos dadas
quanto cimento será gasto
numa ponte por onde ninguém
passará de mãos dadas

mv “as atividades manuais são extremamente não poluentes.” você escreve à mão?
nb Escrevo à mão inicialmente, em cadernos velhos. Aí passo pro computador e imprimo e reescrevo. Ficamos 5 mil anos na escrita manual, depois passamos para o impresso e agora estamos na era digital, do cristal líquido. Eu sou testemunha dessa passagem do impresso pro digital, assim como a geração do Gutenberg testemunhou a passagem do manuscrito para o impresso. Estamos tão envolvidos nessa revolução digital que nem percebemos a radicalidade dessa passagem.

mv alguns cientistas têm chamado de www (wood wide web) a conversa entre as raízes das árvores por meio dos fungos. mas, antes da ciência, alguns artistas e poetas já sabiam dessa rede. você fala com as plantas?
nb Antes de falar com as plantas eu as adubo bem e as rego. Aí falo. Planta não gosta de gente tagarela, gosta de gente que cuida delas. Porque as plantas conversam com a gente também, numa linguagem não verbal. Folhas muito amareladas, falta de nitrogênio. As pontas ficam pretas, secando. Excesso de água. As folhas enrugam, se retorcem, falta de água.

com ou sem elogio
a árvore cresce
o poeta não
mv porquê as palavras não falam?
nb O poeta ensina a palavra a falar. Fala, palavra!

mv poeta e pesquisador de folhas, em todos os sentidos, como você pensa o livro hoje?
nb O livro tem um belo futuro. Veja as feiras do livro, como as pessoas precisam do objeto livro, sensorial, palpável. O ebook taí, o tempo não para. Mas o livro não precisa de um programa, de um software, pilha, tomada... O livro precisa apenas de alguém que o leia.
nb Tenho me aventurado na prosa, esses dias. Tentando fazer as pazes com a minha prosa. Porque o escritor é sempre o seu primeiro leitor. Mas como disse, estou apenas me aventurando, tentando encontrar um estilo que me satisfaça e que seja defensável. No fundo, acho que a gente escreve do jeito que gostaria de ler. Soa egocêntrico? Talvez. Mas a minha praia é mesmo a poesia, onde eu melhor me defendo.
uma paisagem sem árvores
é como um mar sem cavalos
flores caem
e ocupam o chão da manhã
algumas árvores
são imperceptíveis a olho nu
arrancar este poema
enraizado no livro
1 kg de sementes contém
2 kg de esperança
altura de 20 ipês submersos
rios de palavras
correm nas entrelinhas
pra que monumento
se na praça
já existem árvores?

