com Júlia de Carvalho Hansen
júlia de carvalho hansen vive na cidade de são paulo. nas suas saídas a pé com fones de ouvido, às vezes mudos, caminha olhando pro céu e pro chão “procurando pelas árvores e também pelas ervas daninhas”. nasceu em 1984, é poeta, astróloga e editora da Chão da Feira︎︎︎, selo realizado junto com outras três mulheres.
sua relação com as plantas é física, pela respiração, e assim também se faz a sua escrita. entre outros títulos, publicou os recentes Seiva veneno ou fruto (2016) e Romã (2019).
júlia também foi responsável por nos colocar em contato com o poeta leonardo fróes︎︎︎, de quem é amiga. agradecemos! são vários os percursos de sua poesia, “palavras também abrem portas”. da espiral sensível que a relação com ayahuasca, maconha e tabaco produzem, sua poesia sobe e desce, desenhando paisagens entre o buraco negro e a morte. diante das surpresas da vida, o desejo de criança de ser astronauta se transformou em um trabalho regular de leitura de mapas astrais: “criar raízes é o mesmo que fazer órbitas”.
ler júlia é entrar no fogo-lava-língua. é intenso e cheio de detalhes, múltiplo como a diversidade de vida no espaço: “há anos estou dizendo a mesma coisa: carta, estrela, destino, dentes e cavalo”.
a conversa a seguir é um passeio com a poeta. boa viagem!
sua relação com as plantas é física, pela respiração, e assim também se faz a sua escrita. entre outros títulos, publicou os recentes Seiva veneno ou fruto (2016) e Romã (2019).
júlia também foi responsável por nos colocar em contato com o poeta leonardo fróes︎︎︎, de quem é amiga. agradecemos! são vários os percursos de sua poesia, “palavras também abrem portas”. da espiral sensível que a relação com ayahuasca, maconha e tabaco produzem, sua poesia sobe e desce, desenhando paisagens entre o buraco negro e a morte. diante das surpresas da vida, o desejo de criança de ser astronauta se transformou em um trabalho regular de leitura de mapas astrais: “criar raízes é o mesmo que fazer órbitas”.
ler júlia é entrar no fogo-lava-língua. é intenso e cheio de detalhes, múltiplo como a diversidade de vida no espaço: “há anos estou dizendo a mesma coisa: carta, estrela, destino, dentes e cavalo”.
a conversa a seguir é um passeio com a poeta. boa viagem!



LEITOR
Amo ao máximo o jeito de repente brusco do poema
uma folha que encontro caída onde o vento não a levaria
foi o gato no dia seguinte à ayahuasca com o real interesse
de comprar flores para oferecer simplesmente à escrivaninha.
Depois me fascinei pelo jeito meio de quem cresceu
vendo os irmãos jogarem Tetris e aprendeu a encaixar
o cerne de cada coisa no seu próprio quente difundido.
Fiquei em silêncio até ouvir.
Ouvi do cerne das conchas: nosso amor é espiritual
dá pra enrolar a língua nos cavalos de dentro do ouvido.
Foi aí então que encontrei um estilo. Estava
desvairadamente louca pelo encaixe das sílabas no mar.
No mar eu tive de me recriar.
A coisa mais antiga que eu já vi no mundo
não foi o Louvre nem a Unesco que me mostrou.
Foi um canyon de corais vermelhos no mar da China.
Falei de plantas até me tornar luz
tive a morte nas minhas mãos.
Hoje estou fascinada por vídeos de foguetes em ignição
o jeito que eles sobem contrariando a imaginação.
A maneira nítida e atritada de lidarem com o céu
é uma lição de inspirar coragem no mundo.
Não sei se gosto mais dos que atingem a atmosfera
ou dos que explodem e falham sem conseguir.
Sempre me impressionou a capacidade das palavras surgirem
e com o tempo passei a empilhá-las
só pra vê-las brilharem ou envelhecerem
como um rosto, um jornal ou os amigos da escola.
A vida segue tranquila até uma virada shakespeariana.
A metafísica interpretativa das sensações tem olhos
e contorce o corpo todo aberto na Via Láctea
deve haver um lugar melhor pras nossas línguas.
Quis ter a tua orelha — os teus olhos —
a minha voz. Toda crítica e derramada.
Reprimi o uso de tanto que causei certo alarde nas redes
vítreas sociais em que eu me afogo com o propósito
de que você veja e não veja que da próxima vez
da próxima vez em que eu for te ver
vou vestida com um colar de alhos
pendurado no pescoço.
Além dum aroma picante
não sei o que há entre nós
se é só uma nódoa, um anzol
ou meu velho hábito
de me meter em maus lençóis.
Me envolvo toda na fibra.
Faz pouco tempo
achei os amuletos certos
pra minha mesa de trabalho.
Se eu te escolhesse um nome
seria linho ou algodão.
Você teimava na gaveta.
Como pude perder o ritmo
forçar o enjambement
pra cima do nível do aceitável
me fazer sibilante e sinuosa, exagerar
nas analogias, assonâncias e ser toda
como se vulcões de lava
lavassem os fios dos teus cabelos.
Os ritos do encantamento e da maravilha
estudei e delirei, previ e até movi
montanhas pra te fazer de meu
alimentei na boca as manias da beleza.
Tive os dígitos mordidos
chaves entre as coxas
e a promessa de chupar até abrir
os cadeados entre os teus dentes
escondem a verdade e o sentido.
Te deixar
ciumento farejando
a minha sabedoria
é saber a vida.
A vida é um eterno dar biziu
curto-circuito ou tilt
nas faíscas do dia a dia
espero um dia dar em clarão
pé de romã tomando um sol
nítido, manso e morno.



mataviva o que você tem plantado?
júlia de carvalho hansen Adoraria dizer que maconha, alecrins e inhames, mas atualmente nossa casa está em reforma e as plantas têm sofrido um bocado com as areias, cimentos, preparos de concreto. Chega a ser impressionante como elas se ressentem desses materiais no ambiente. Plantas diversas vivem em casa, mas eu gostaria de cultivar mais. Palmeiras, costelas de adão, agaves, dracenas, filodendros, samambaias... As pitangueiras, ipês amarelos e goiabeiras crescem espontaneamente no quintal, é uma dádiva impressionante. E também brotam como daninhas muito quebra-pedra, arnica, dente de leão. Mas no começo deste ano tenho cuidado bastante e com especial atenção de umas dúzias de murtas e nandinas, vou tratando delas com o intuito de crescerem em altura e largura, pra criarmos muros verdes, filtros vegetais arbustivos de mais privacidade em relação à vizinhança nesta capital de São Paulo.

mv
Seiva veneno ou fruto e Romã são os títulos dos seus últimos livros. como as plantas participam do seu processo de escrita?
jch
Eu acho que como as plantas estão em tudo, o planeta Terra é delas e da água, que são fundamentais pra nossa sobrevivência. Assim, as plantas participam da ligação mútua da minha respiração com o mundo, que é a força que move o que escrevo. As plantas também sempre me ensinaram por analogias a capacidade de transformação energética, de estruturação firme e delicada, de tonalidades diversas. Em termos mais de usufruto, tenho certeza que eu nunca teria escrito o que já escrevi se não fosse uma aprendiz irregular delas, isto é, se não tomasse ayahuasca, fumasse maconha, ritualizasse o tabaco.

mv a medicina, o uso de plantas, os cogumelos, os fungos, os estados alterados de consciência são para você tecnologias de poesia?
jch Completamente. Me agrada bastante a noção de tecnologia associada à aproximação das plantas e das substâncias ligadas a elas. Mas é curioso que sinto que nos falta um verbo fundamental. Porque tanto “consumir” como “usar” me parecem ser verbos autoritários e ainda hierárquicos de uma relação que a gente tenta que a mente perceba como a relação se dá e é: mais horizontal, mais interligada. As plantas nos ensinam coisas e nós também canalizamos modos e moods delas.
Acho que cabe referir minha relação específica com cada uma. Faz anos que eu penso que quero falar disso cada vez mais frontalmente e vocês são os primeiros a me perguntarem assim mais diretamente, vou aproveitar, obrigada. Eu citaria que as plantas com as quais mais interagi em relação à escrita são a maconha e a ayahuasca.
Se não tivesse bebido ayahuasca com 22 anos de idade acho que não teria me livrado do medo de ser eu mesma, ou pelo menos do cinismo como força operativa deste medo. Também me foi importante que tenha sido, a princípio, num lugar sem aproximações místicas, religiosas, tradicionais ou mesmo xamânicas dos usos de ayahuasca. Minha primeira experiência e onde tomei por alguns anos foi num grupo não-dogmático, e se não tivesse sido assim eu não teria me entregado à experiência. Mas, desde 2012, eu só bebo ayahuasca em contextos indígenas, com xamãs ou pajés conduzindo o ritual. Mas, voltando lá atrás, eu era e ainda sou uma pessoa com intensas tendências autodestrutivas e a ayahuasca me ajudou a fazer uma curva nisto. Se não fosse ela eu tenho absoluta certeza que esta violência teria me mantido enclausurada nas não-permissões e aí, eu teria ou me matado, ou morrido em vida. Se você toma ayahuasca e de fato vive o que ela pode ensinar, o que ela te mostra... não há como seguir com uma postura cínica em relação à existência de se estar vivo. Caramba, é uma dádiva, é precioso estar desse lado do tempo.
Se por um lado a ayahuasca me remeteu a esse caminho de integração a mim mesma, ela também me mostrou uma fundamental explosão do meu núcleo, a realidade da mutualidade com o mundo. Sem exageros, eu sei que sem a planta eu não teria nenhuma possibilidade de sobrevivência sensível. E que ainda tenho muito a conviver com a planta. Meu livro Seiva veneno ou fruto é uns 75% escrito com ela, muitos dos seus poemas eu escrevi no escuro de rituais de ayahuasca, quando o efeito começava a baixar eu tentava transcrever o que tinha visto, compreendido, transmutado.
Já a maconha, cujo uso me é mais cotidiano, sempre me permitiu uma interligação intuitiva imediata, um refresco da velocidade do controle. Durante anos bastava eu acender um béque pra imediatamente pensar num verso ou mesmo num texto inteiro. Amo a maconha. Amo. Minha dose imediata de prazer. Mas ela também me usa, me desgasta. A medicina chinesa diz que a maconha consome a energia do rim, que nos é tão vital. Eu noto isso. Mas praticamente todos os meus textos têm alguma dose maior ou menor de maconha. Às vezes bem alta, o Romã, por exemplo, tem muita maconha nos seus encantos. Chocolates e música pop também. No que ela me ajuda, a maconha é uma delícia, me encaminha contra todos os desvios do racionalismo e amplifica o meu ouvido. Sinto que ela é uma planta auditiva, que tem ouvido absoluto. Escrevi muitas vezes graças ao seu ritmo e a sua graça. Hoje em dia já não é assim, às vezes ela me cansa. E muitas vezes a maconha pode me confundir mais do que me auxiliar num texto, mas acho que tem a ver com ela já ter me entregue ao portal da dissolução da matéria através da linguagem, eu já escrevi tanto através dele que eu o atravessei e agora não precisamos mais tanto uma da outra. Às vezes tenho tido a impressão de que vou deixar de fumar repentinamente. Ainda não aconteceu.
Além delas duas, acho que a relação de aprofundamento mais intensa que eu tenho é com o tabaco, em muitas formas de utilização. Fiz algumas vezes no passado purgas de tabaco, que é uma toma dele líquido em chá, limpa muitas conexões ancestrais, dá uma clareza e estrutura radiantes e dizem que desintoxica até dos restos de wi-fi que grudam nos corpos vibráteis que somos. A partir disso, foi me dada uma relação não-viciada com fumar tabaco e olha que fumei Marlboro durante anos quando era mais jovem. Hoje em dia posso esquecer totalmente do tabaco, da necessidade ou desejo de fumá-lo, mas quando quero ou sinto que preciso, ele está disponível. O tabaco é um avô, um mestre mais velho da contenção e da interligação da matéria com o espírito, ele enraíza as expansões, o tabaco é quem ramifica as ligações e também dá um acesso muito particular às palavras. É estruturante. Curioso que eu o reconheço menos diretamente ligado à minha escrita, mas está muito ligado ao meu trabalho como astróloga, ao que eu falo, ao que eu só consigo expressar através da voz.
E tenho uma devoção ao rapé, ou melhor, aos muitos tipos de rapé. Conheço mais os com tabaco, mas ando experimentando. A tranquilidade muscular, a estabilização do mental, tudo isso. A remoção do trivial. O rapé tem a ver com enraizamento na matéria e eu subo muito fácil, então ele me ajuda bem. A amplificar bem, mas vindo do chão. Agora ando interessadíssima num rapé que tem DMT, o yopo. É recente que eu o descobri, ou foi ele quem me encontrou, não sei. Sei que a abertura do coração que ele traz é suntuosa. Da última vez que usei semana passada tive visões muito sutis, com leopardos e condores. Muito bonito.
Já usei peiote também e preciso conhecer melhor os muitos tipos de cactos, ainda nesta encarnação. Espero um dia fumar ópio.
Minha relação com os fungos e cogumelos é menor em volume de experiências, embora a viagem psicodélica mais intensa que já tive tenha sido com eles em Amsterdã, em 2008. E não sei bem qual tipo de cogumelo que me venderam. Mas eu contei pro atendente de uma loja especialista neles que eu bebia ayahuasca no Brasil, ele disse que tudo ali na frente era leve demais, entrou numa parte do staff da loja e trouxe de dentro de uma geladeira uma bandeja bem específica, que disse que não podia oferecer pra qualquer um. Aí... né? Eu era mais jovem e bancava. Tomei metade da dose que o cara me recomendou, afinal conheço meu ascendente em Peixes e migrar pro transcendental não me é difícil. Em questão de minutos eu via pessoas se transformando em dinossauros na rua e talvez vice-versa. E depois de vê-lo num cartão postal, tive certeza de que o Mastroianni estava em corpo vivo ao meu lado no café. Quem me dera! Mas como sempre tive uma noção muito clara do imaginário, não cheguei a acreditar que fossem mesmo dinossauros ou o Mastroianni. Essas coisas me divertiam por eu conseguir observá-las sabendo que eram o que eram. Mas aí me perdi nas ruas diagonais de Amsterdã, até que fui parar numa praça que tinha um telefone no centro. Telefonei a cobrar via Embratel pra casa dos meus pais, meu pai atendeu, eu não falava há quase dois meses com ele e quando pensei que fosse começar a chorar de “aaaah meu deus estou perdida daddy” dei uma risada ao ouvir a voz dele e conversamos por umas duas horas, sem que ele nunca imaginasse que eu tinha tomado cogumelos. Ele até hoje não sabe, e não teria problema se soubesse. Mas esse é meu pai, o imaginário dele é de quem tomou cogumelos sem nunca os ter tomado. Com o tempo passado e a ajuda de donuts com muito açúcar, o efeito baixou e eu consegui ler novamente o mapa da cidade, que me levou de volta pro hostel.
Aí fiquei anos sem tomar cogumelos. Em 2021 eu tomei uma vez sozinha em casa, foi importante, conversei com a Maria Bethânia e a Cláudia Lisboa na sala de casa, chorei chorei chorei quando vi uma foto do meu gato que foi assassinado. Depois fiz uso de microdoses de psilocibina por alguns meses... Deu uma alargada no meu humor, uma subida. Mas também triplicou minha ansiedade. Acho que eu precisaria viver alguma experiência mais ritualizada com eles pra entender melhor o que são. Mas eu não sei, sinto a toxicidade dos fungos no meu corpo, que reage muito, a pele estoura, meu estômago não curte tanto, tomo litros de chá de erva doce junto pra conseguir não passar mal de enjoo. Acho até mais difícil de assimilar a proliferação do imaginário que os cogumelos produzem, eu acho mais difícil de integrar no depois do que com as plantas.
Acho que cabe referir minha relação específica com cada uma. Faz anos que eu penso que quero falar disso cada vez mais frontalmente e vocês são os primeiros a me perguntarem assim mais diretamente, vou aproveitar, obrigada. Eu citaria que as plantas com as quais mais interagi em relação à escrita são a maconha e a ayahuasca.
Se não tivesse bebido ayahuasca com 22 anos de idade acho que não teria me livrado do medo de ser eu mesma, ou pelo menos do cinismo como força operativa deste medo. Também me foi importante que tenha sido, a princípio, num lugar sem aproximações místicas, religiosas, tradicionais ou mesmo xamânicas dos usos de ayahuasca. Minha primeira experiência e onde tomei por alguns anos foi num grupo não-dogmático, e se não tivesse sido assim eu não teria me entregado à experiência. Mas, desde 2012, eu só bebo ayahuasca em contextos indígenas, com xamãs ou pajés conduzindo o ritual. Mas, voltando lá atrás, eu era e ainda sou uma pessoa com intensas tendências autodestrutivas e a ayahuasca me ajudou a fazer uma curva nisto. Se não fosse ela eu tenho absoluta certeza que esta violência teria me mantido enclausurada nas não-permissões e aí, eu teria ou me matado, ou morrido em vida. Se você toma ayahuasca e de fato vive o que ela pode ensinar, o que ela te mostra... não há como seguir com uma postura cínica em relação à existência de se estar vivo. Caramba, é uma dádiva, é precioso estar desse lado do tempo.
Se por um lado a ayahuasca me remeteu a esse caminho de integração a mim mesma, ela também me mostrou uma fundamental explosão do meu núcleo, a realidade da mutualidade com o mundo. Sem exageros, eu sei que sem a planta eu não teria nenhuma possibilidade de sobrevivência sensível. E que ainda tenho muito a conviver com a planta. Meu livro Seiva veneno ou fruto é uns 75% escrito com ela, muitos dos seus poemas eu escrevi no escuro de rituais de ayahuasca, quando o efeito começava a baixar eu tentava transcrever o que tinha visto, compreendido, transmutado.
Já a maconha, cujo uso me é mais cotidiano, sempre me permitiu uma interligação intuitiva imediata, um refresco da velocidade do controle. Durante anos bastava eu acender um béque pra imediatamente pensar num verso ou mesmo num texto inteiro. Amo a maconha. Amo. Minha dose imediata de prazer. Mas ela também me usa, me desgasta. A medicina chinesa diz que a maconha consome a energia do rim, que nos é tão vital. Eu noto isso. Mas praticamente todos os meus textos têm alguma dose maior ou menor de maconha. Às vezes bem alta, o Romã, por exemplo, tem muita maconha nos seus encantos. Chocolates e música pop também. No que ela me ajuda, a maconha é uma delícia, me encaminha contra todos os desvios do racionalismo e amplifica o meu ouvido. Sinto que ela é uma planta auditiva, que tem ouvido absoluto. Escrevi muitas vezes graças ao seu ritmo e a sua graça. Hoje em dia já não é assim, às vezes ela me cansa. E muitas vezes a maconha pode me confundir mais do que me auxiliar num texto, mas acho que tem a ver com ela já ter me entregue ao portal da dissolução da matéria através da linguagem, eu já escrevi tanto através dele que eu o atravessei e agora não precisamos mais tanto uma da outra. Às vezes tenho tido a impressão de que vou deixar de fumar repentinamente. Ainda não aconteceu.
Além delas duas, acho que a relação de aprofundamento mais intensa que eu tenho é com o tabaco, em muitas formas de utilização. Fiz algumas vezes no passado purgas de tabaco, que é uma toma dele líquido em chá, limpa muitas conexões ancestrais, dá uma clareza e estrutura radiantes e dizem que desintoxica até dos restos de wi-fi que grudam nos corpos vibráteis que somos. A partir disso, foi me dada uma relação não-viciada com fumar tabaco e olha que fumei Marlboro durante anos quando era mais jovem. Hoje em dia posso esquecer totalmente do tabaco, da necessidade ou desejo de fumá-lo, mas quando quero ou sinto que preciso, ele está disponível. O tabaco é um avô, um mestre mais velho da contenção e da interligação da matéria com o espírito, ele enraíza as expansões, o tabaco é quem ramifica as ligações e também dá um acesso muito particular às palavras. É estruturante. Curioso que eu o reconheço menos diretamente ligado à minha escrita, mas está muito ligado ao meu trabalho como astróloga, ao que eu falo, ao que eu só consigo expressar através da voz.
E tenho uma devoção ao rapé, ou melhor, aos muitos tipos de rapé. Conheço mais os com tabaco, mas ando experimentando. A tranquilidade muscular, a estabilização do mental, tudo isso. A remoção do trivial. O rapé tem a ver com enraizamento na matéria e eu subo muito fácil, então ele me ajuda bem. A amplificar bem, mas vindo do chão. Agora ando interessadíssima num rapé que tem DMT, o yopo. É recente que eu o descobri, ou foi ele quem me encontrou, não sei. Sei que a abertura do coração que ele traz é suntuosa. Da última vez que usei semana passada tive visões muito sutis, com leopardos e condores. Muito bonito.
Já usei peiote também e preciso conhecer melhor os muitos tipos de cactos, ainda nesta encarnação. Espero um dia fumar ópio.
Minha relação com os fungos e cogumelos é menor em volume de experiências, embora a viagem psicodélica mais intensa que já tive tenha sido com eles em Amsterdã, em 2008. E não sei bem qual tipo de cogumelo que me venderam. Mas eu contei pro atendente de uma loja especialista neles que eu bebia ayahuasca no Brasil, ele disse que tudo ali na frente era leve demais, entrou numa parte do staff da loja e trouxe de dentro de uma geladeira uma bandeja bem específica, que disse que não podia oferecer pra qualquer um. Aí... né? Eu era mais jovem e bancava. Tomei metade da dose que o cara me recomendou, afinal conheço meu ascendente em Peixes e migrar pro transcendental não me é difícil. Em questão de minutos eu via pessoas se transformando em dinossauros na rua e talvez vice-versa. E depois de vê-lo num cartão postal, tive certeza de que o Mastroianni estava em corpo vivo ao meu lado no café. Quem me dera! Mas como sempre tive uma noção muito clara do imaginário, não cheguei a acreditar que fossem mesmo dinossauros ou o Mastroianni. Essas coisas me divertiam por eu conseguir observá-las sabendo que eram o que eram. Mas aí me perdi nas ruas diagonais de Amsterdã, até que fui parar numa praça que tinha um telefone no centro. Telefonei a cobrar via Embratel pra casa dos meus pais, meu pai atendeu, eu não falava há quase dois meses com ele e quando pensei que fosse começar a chorar de “aaaah meu deus estou perdida daddy” dei uma risada ao ouvir a voz dele e conversamos por umas duas horas, sem que ele nunca imaginasse que eu tinha tomado cogumelos. Ele até hoje não sabe, e não teria problema se soubesse. Mas esse é meu pai, o imaginário dele é de quem tomou cogumelos sem nunca os ter tomado. Com o tempo passado e a ajuda de donuts com muito açúcar, o efeito baixou e eu consegui ler novamente o mapa da cidade, que me levou de volta pro hostel.
Aí fiquei anos sem tomar cogumelos. Em 2021 eu tomei uma vez sozinha em casa, foi importante, conversei com a Maria Bethânia e a Cláudia Lisboa na sala de casa, chorei chorei chorei quando vi uma foto do meu gato que foi assassinado. Depois fiz uso de microdoses de psilocibina por alguns meses... Deu uma alargada no meu humor, uma subida. Mas também triplicou minha ansiedade. Acho que eu precisaria viver alguma experiência mais ritualizada com eles pra entender melhor o que são. Mas eu não sei, sinto a toxicidade dos fungos no meu corpo, que reage muito, a pele estoura, meu estômago não curte tanto, tomo litros de chá de erva doce junto pra conseguir não passar mal de enjoo. Acho até mais difícil de assimilar a proliferação do imaginário que os cogumelos produzem, eu acho mais difícil de integrar no depois do que com as plantas.


Da palavra sair
habitar outros mundos
a espinha dorsal do peixe
lamber até limar os dígitos.
Dar os tímpanos
ao vibrar dos grilos
reconhecer a chegada do trovão
no deslocar do sangue
e ao anteceder terremotos
subir! No alto da árvore
e cair com o rabo
enovelando um galho
se dependurar na abóbada celeste
soprar o rumo dos polos
e das marés que vem dos polos.
Não conhecer despedida
viagem ou remorso
código, símbolo ou faca.
Nunca alterar a rota do fogo.
Ser seiva, veneno. Ou fruto.
mv planetas, plantas, poemas. como eles se relacionam no seu dia a dia?
jch Ah são coisas nas quais eu estou interessada a todo momento. Os planetas, quem diria, viraram meu ganha pão. Eu quando era pequena achava que seria astronauta, virei astróloga. Das plantas eu tinha algum medo quando era criança, me pareciam ter todos os segredos do oculto e hoje em dia esses segredos me convidam a observá-las mais profundamente. Agora, os poemas... Uns dias atrás eu estava muito angustiada e cansada das repetições que a vida me leva a enfrentar. Quando eu de repente percebi que nada absolutamente funcionava, abri um livro de poemas do Mahmud Darwish, Menos Rosas, livro que eu não lia há anos. E, de repente, cara, ali tinha o mundo das resoluções sem resoluções. Toda a transformação vital que eu precisava observar acontecendo na linguagem. Esse resgate, essa ressurreição da sensibilidade, intensa e sutil, que a poesia traz de dádiva pra nossa cabeça, pro nosso corpo.

mv a leitura de planetas é uma leitura de poesia?
jch Não. A poesia é um campo de artifícios, de efeitos, do imaginário, das emoções, das linguagens. Já o que é assustador numa leitura astrológica é que estamos falando da carne das coisas e das coisas que acontecem no tempo-espaço. Quando observamos um mapa astrológico estamos falando diretamente de seres, de pessoas, de acontecimentos. Por analogia dá pra dizer que se aproximam, são linguagens e tal. A poesia é uma bússola, é carne da existência também. Mas o mapa... é o mapa.
mv chão da feira é o nome da editora que leva adiante com outras mulheres. editar é também trabalhar o solo?
jch Totalmente, o lema da Chão da Feira é “Editar como quem planta.” Esse nome (que eu acho maravilhoso) está ligado a uma rua que fica em frente ao Castelo de São Jorge em Lisboa, que é a rua em que a Carolina Fenati morava anos atrás. O nome foi a Carol que escolheu e veio dali, daí, dessa habitação de um lugar antigo mesmo, ancestral e ao mesmo tempo cotidiano, simples, uma localização. Acho que todas as publicações da editora têm esse intuito de arar, adubar, cuidar do solo que nos agrega.

Os livros são de natureza mineral.
Alguns bebem-se outros se proliferam
como água. Outros pedra, não fruta
rocha de onde brota a tua pele.
Passa por cima uma formiga.
Há capins vibrando
vento e sol com sombra
o musgo cresce, um mosquito
entra na tua boca e você cuspindo
cai na água que alguém
numa cidade adiante
distante, talvez
sem mágoa
vira a página
bebe.

mv velocidade é uma palavra que você usou mais de uma vez. é possível estar na cidade de são paulo e experimentar outras velocidades?
jch Puta mais que possível né, meu, é necessário! Ou talvez São Paulo seja isto: a convivência com uma multiplicidade de velocidades inabarcáveis num todo só, ou em comum. Eu sou das habitantes de São Paulo que evitam sair muito de casa, porque eu acho quase tudo uma ranhura e rasura constante. É muito ruído. Evito, eu saio praticamente todo dia pra trabalhar, mas faço deslocamentos maiores mais raramente. A cidade me cansa e rápido, me parece que tudo precisa ser um pouco planejado antes de acontecer e acabo sentindo preguiça. É uma cidade mental, neste sentido. Eu sinto falta da beleza e da possibilidade de só se estar em algum lugar em SP. É certo que estamos tentando isso cada vez mais na cidade, mas é um local que é sempre preciso ir ficar ou ir a outro lugar pra poder se estar. Deve ser por isso, que eu gosto de me movimentar a pé em SP, porque em movimento, em trânsito e sozinha, sinto que posso somente estar nela. E sinto um tipo de contato com a realidade dessas muitas velocidades de SP e isto às vezes até me anima, acho versátil.
Mas tenho fases com São Paulo e atualmente estou numa bad. Sinto que não tem como uma cidade que tem os rios poluídos no nível que são poluídos o Pinheiros e o Tietê ter qualquer nível de autoestima aceitável em relação a si mesma. Eu acho tanto a moral do paulistano e a vaidade do paulistano das coisas mais alienadas do real que existem. Repito: não tem como os rios estarem no estado que estão e o inconsciente que habita essa cidade ser algo considerável viável e digno de respeito.
Mas eu sou daqui e também entendo quem a defende. Porque eu posso amar algumas coisas urbanas de SP, como o metrô. Sou realmente apaixonada por aquilo e antes da pandemia eu o utilizava muito. Acho o maquinário, a eficiência, as pessoas indo pra todos os lados, uma coisa absurda de intensa.
Mas, como disse, eu também ando muito a pé nas ruas de SP, sempre de fones de ouvido, às vezes eles estão até sem música tocando, mas eu preciso deles abafando um pouco o ambiente. Habitar São Paulo não é uma relação que pra mim seja tranquila. Eu ando na cidade sem pensar muito mas vou olhando com os olhos mirando, procurando pelas árvores e também pelas ervas daninhas. Vou olhando pro céu e pro chão. Isto não é uma escolha consciente, é porque é o que me chama mesmo a atenção. E nisto eu também sinto que há uma força de irrupção em SP. Sinto até mesmo nas plantas. Tudo aqui eram rios, né!? Há poucas décadas atrás... E não acho uma cidade encalacrada.
E é curioso porque embora eu não seja muito afeita a multidões e a ideia de que se eu acordar de manhã em casa e tentar sair da cidade a pé, provavelmente levarei um dia andando e ainda estarei numa zona urbana, isto é melhor nem pensar muito que dá claustrofobia. Ou melhor, aprendi esse termo recentemente: agorafobia, o medo da praça pública. Mas, embora isso, eu gosto muito mesmo do anonimato de se andar em São Paulo, da sensação de que é tanta gente que eu realmente sou ninguém. Ninguém e com meus fones de ouvido. Mas a cidade também é provinciana pra KCT, me assusta às vezes no Brasil que a gente não fale mais sobre o nosso provincianismo.
Mas tenho fases com São Paulo e atualmente estou numa bad. Sinto que não tem como uma cidade que tem os rios poluídos no nível que são poluídos o Pinheiros e o Tietê ter qualquer nível de autoestima aceitável em relação a si mesma. Eu acho tanto a moral do paulistano e a vaidade do paulistano das coisas mais alienadas do real que existem. Repito: não tem como os rios estarem no estado que estão e o inconsciente que habita essa cidade ser algo considerável viável e digno de respeito.
Mas eu sou daqui e também entendo quem a defende. Porque eu posso amar algumas coisas urbanas de SP, como o metrô. Sou realmente apaixonada por aquilo e antes da pandemia eu o utilizava muito. Acho o maquinário, a eficiência, as pessoas indo pra todos os lados, uma coisa absurda de intensa.
Mas, como disse, eu também ando muito a pé nas ruas de SP, sempre de fones de ouvido, às vezes eles estão até sem música tocando, mas eu preciso deles abafando um pouco o ambiente. Habitar São Paulo não é uma relação que pra mim seja tranquila. Eu ando na cidade sem pensar muito mas vou olhando com os olhos mirando, procurando pelas árvores e também pelas ervas daninhas. Vou olhando pro céu e pro chão. Isto não é uma escolha consciente, é porque é o que me chama mesmo a atenção. E nisto eu também sinto que há uma força de irrupção em SP. Sinto até mesmo nas plantas. Tudo aqui eram rios, né!? Há poucas décadas atrás... E não acho uma cidade encalacrada.
E é curioso porque embora eu não seja muito afeita a multidões e a ideia de que se eu acordar de manhã em casa e tentar sair da cidade a pé, provavelmente levarei um dia andando e ainda estarei numa zona urbana, isto é melhor nem pensar muito que dá claustrofobia. Ou melhor, aprendi esse termo recentemente: agorafobia, o medo da praça pública. Mas, embora isso, eu gosto muito mesmo do anonimato de se andar em São Paulo, da sensação de que é tanta gente que eu realmente sou ninguém. Ninguém e com meus fones de ouvido. Mas a cidade também é provinciana pra KCT, me assusta às vezes no Brasil que a gente não fale mais sobre o nosso provincianismo.

mv em quais paisagens você mora?
jch Olha eu queria morar próxima ou dentro do Atlântico da Bahia, ou num Igarapé do Arapiuns, mas nesse momento eu tô vendo o prédio de 20 andares que estão construindo três ruas abaixo de casa e cuja obra não para nem de noite. Tem um vizinho lá de perto que grita da janela uns palavrões inomináveis, ele às vezes até chama a polícia, eles vêm. Mas o concreto, o dinheiro, continuam mais fortes.
Ando cada vez mais ligada à Mantiqueira, assim como sei que vocês são, mas em outra localização. Mas eu ando com muita saudade mesmo de estar uma temporada mais longa na Bahia. Em janeiro uma soteropolitana me disse que dizer isso assim é coisa de apropriação de paulista, talvez ela esteja certa, não duvido, mas não existe lugar como a Bahia.
Ando cada vez mais ligada à Mantiqueira, assim como sei que vocês são, mas em outra localização. Mas eu ando com muita saudade mesmo de estar uma temporada mais longa na Bahia. Em janeiro uma soteropolitana me disse que dizer isso assim é coisa de apropriação de paulista, talvez ela esteja certa, não duvido, mas não existe lugar como a Bahia.


mv em 2015, a Chão da Feira reeditou Sibilitz, livro de Leonardo Fróes, publicado originalmente em 1981. como foi este encontro com Fróes?
jch Vamos começar pelo começo. Por anos eu achava que tinha conhecido a escrita do Leonardo Fróes pela revista online Modo de Usar & Co.︎︎︎ , através de uma publicação no blogue dela, feita pelo Ricardo Domeneck, isto coisa de uns dez ou mais anos atrás. Depois, quando eu e o Reuben︎︎︎ ficamos amigos, um dia atravessando uma catraca de metrô em que ele ia pra um lado e eu pro outro, ele me contou que tinha estado com o Fróes no Festival Vertentes e que o cara não era um ermitão que quer só ficar isolado, muito pelo contrário, era das pessoas mais gentis com os outros que já existiram. De relance o Reuben me disse que o Leonardo tinha mencionado um desejo de reeditar seus livros dos anos 80, e mencionou o Sibilitz, que era um livro que eu tinha lido não fazia muito tempo e tinha delirado de prazer com a sua liberdade. Falei com a Carolina Fenati e a Luísa Rabello (que são editoras na Chão da Feira), procurei pelo Dirceu Villa que me deu o endereço físico do Fróes. Então enviei um envelope pra casa dele com uns livros da editora e uma carta falando que queria reeditar o Sibilitz e que caso ele topasse, que me escrevesse ou telefonasse. Coisa de nem uma semana depois eu tinha um e-mail dele na minha caixa postal e acho que na semana seguinte já tínhamos percebido que somos grandes amigos. No fundo, o que importa é isso, encontrar quem nos é cordial e nosso coração dá corda junto. E que isso me aconteça com o Leonardo Fróes é dos maiores presentes de vida da minha última década, quem sabe da minha vida inteira, né?
E aí aqueles lances mágicos... Anos depois de já sermos amigos, de já termos editado o Sibilitz, organizando minha mudança de casa eu achei uma pasta de recortes da minha adolescência. Nela tinham muitos papéis, marcados por furos de percevejos, fotos e recortes que integravam o mural de cortiça do meu quarto de adolescente. Entre eles, um xerox que meu professor de literatura da época do primeiro colegial tinha me dado de presente. Uma cópia de uma crônica de jornal em papel impressa sulfite, bem amarelado nas bordas. Deve ter ficado uns 5 anos presa naquela cortiça que ficava na cabeça da minha cama. Seu título era “A poesia não é um cão sem dono”, e seu autor: Leonardo Fróes.
E aí aqueles lances mágicos... Anos depois de já sermos amigos, de já termos editado o Sibilitz, organizando minha mudança de casa eu achei uma pasta de recortes da minha adolescência. Nela tinham muitos papéis, marcados por furos de percevejos, fotos e recortes que integravam o mural de cortiça do meu quarto de adolescente. Entre eles, um xerox que meu professor de literatura da época do primeiro colegial tinha me dado de presente. Uma cópia de uma crônica de jornal em papel impressa sulfite, bem amarelado nas bordas. Deve ter ficado uns 5 anos presa naquela cortiça que ficava na cabeça da minha cama. Seu título era “A poesia não é um cão sem dono”, e seu autor: Leonardo Fróes.

Criar raízes é o mesmo que fazer órbitas.
Desenhar o resto da água
que se abanca em gelo nos polos
ou a cobertura de musgo
que vive na sombra
e com o vento não se arranca
embora movimente
sutilmente
quando chove.
Oferecer o próprio corpo a ser
arbusto e água corrente
vento já não sei
o que engloba
o que me olha.

mv você vai lançar um livro de poemas dedicado a um gato. pode nos falar mais sobre ele? como a vida com as espécies companheiras se relaciona com sua poesia?
jch Vou sim, mas não é bem um livro, é uma série de poemas que será publicada no novo número da Gratuita︎︎︎, a revista de circulação gratuita da Chão da Feira. A série é dedicada ao gatinho que tivemos em casa de março a novembro de 2020, o Tchuruco Obi Carlos Chuckinho The First. Ele nasceu no telhado da vizinha, filho de uma gata feral que estávamos tentando castrar desde o ano anterior, quando castramos 5 filhotes dela através de um protocolo que se chama CED – é um lance internacional, e significa Captura, Esterilização e Devolução, e é utilizado pro controle das populações de colônias de gatos ferais em grandes cidades.
O Tchuruco, nós o conseguimos pegá-lo ainda bem filhote e com isso domesticá-lo. Desde que nasci eu já devo ter tido sei lá mais que 50 gatos, os amei a todos de maneira específica, todos me ensinaram coisas com suas personalidades felinas absolutamente únicas. Mas o Tchuruco tinha um que diferente, ele era muitíssimo especial, um ser búdico, não havia absolutamente nada que acontecesse com ele que ele não encarasse como algo divertido, positivo, relaxado e carinhoso. Além dele eu só conheci um outro gato parecido. Mas ele ainda por cima tinha essa coisa de ser ½ feral e ½ doméstico, às vezes você sentia vindo dele uma liberdade que era absolutamente inegociável. Uma coisa mais selvagem mesmo, e que era muito física. Tipo, diferentemente dos nossos gatos domésticos que não conseguem sair do território da nossa casa, ele provavelmente por suas origens ferais era totalmente de outro alcance. Uma coisa absurda desses gatos é a capacidade de escalarem qualquer coisa que seja vertical. Tipo um muro de mais de dois metros e meio de altura.
O Tchuruco tinha uma convivência muito importante com a gente, também porque foram os primeiros meses da pandemia, duríssimos tempos e o gato vinha sempre irradiando amor, luz, prazer, riso. Um dia ele sumiu, ele que sempre voltava nas mesmas horas. Procuramos em toda parte e de todo jeito. Coisa de cinco dias depois nós conseguimos saber que numa noite do fim de novembro ele foi envenenado por um vizinho. Quem o encontrou o colocou num saco de lixo e o jogou numa lixeira da prefeitura. Foi um lance muito perverso, o cara que o envenenou é uma espécie de serial killer de gatos, matou quatro em um mês. O nosso foi o terceiro. Eu fiz um escarcéu na vizinhança, redigi e imprimi e entreguei uma carta na caixa do correio de mais de 250 vizinhos, abrimos um processo no Ministério Público que até teve alguma continuidade. Mas poucas vezes senti tanto ódio e impotência. Foi uma coisa muito violenta porque eu não encontrei nenhum sentido. Tipo: houve uma situação décadas atrás que na minha família fomos assaltados, amarrados. Foi uma experiência aterrorizante, também porque os assaltantes achavam que éramos uma coisa que não éramos: ricos. Meus pais são professores... Foi terrível, depois desse acontecimento nem nossas ligações familiares, nem conseguimos mais ficar na casa em que vivíamos há décadas. Mas até ali deu no depois pra encontrar um sentido macro: a violência social da desigualdade econômica, racial, estrutural, essa merda que é o Brasil. Mas, matarem gatos envenenados? Putz... não tem sentido. Ou eu não consegui encontrar nenhuma motivação. Eu sucumbi mesmo. Passei semanas sem conseguir trabalhar lendo mapas, porque eu não conseguia auxiliar qualquer pessoa que fosse da nossa espécie, porque se um ser humano é capaz de fazer um negócio desses de envenenar um animal...
Os poemas eu comecei a escrever em 2021, quando senti que ainda precisava escrever sobre e para ele como um gesto de luto mesmo. E isto foi depois de tomar os cogumelos que contei numas respostas acima. Eu passei horas curtindo os efeitos sem grandes emoções, até que por acaso me deparei com uma foto do Tchuruco e chorei como um bebê. Aí entendi que precisava fazer algo além do que já tinha feito e o novo número da Gratuita (que sairá em breve) tem um tema global que encaixa bem nisso. Então escrevi. Me sinto um pouco mais em paz com isto depois de ter escrito. A escrita tem, ainda bem, esse poder.
No mais, acho que não tem uma coisa no meu dia a dia que não seja alterada pela convivência com as espécies companheiras. E as suas formas de comunicação empática comigo sempre determinam o que eu escrevo, sim. Inclusive a totalidade completa de entendimento sem que haja decodificação total da linguagem entre um e outro. Isto é maravilhoso na sutileza e enormidade que é. Eu sobrevivo na mentalidade social humana (que é tão rígida e normativa) graças a isso, graças a eles, os bichos que nos são companheiros.
O Tchuruco, nós o conseguimos pegá-lo ainda bem filhote e com isso domesticá-lo. Desde que nasci eu já devo ter tido sei lá mais que 50 gatos, os amei a todos de maneira específica, todos me ensinaram coisas com suas personalidades felinas absolutamente únicas. Mas o Tchuruco tinha um que diferente, ele era muitíssimo especial, um ser búdico, não havia absolutamente nada que acontecesse com ele que ele não encarasse como algo divertido, positivo, relaxado e carinhoso. Além dele eu só conheci um outro gato parecido. Mas ele ainda por cima tinha essa coisa de ser ½ feral e ½ doméstico, às vezes você sentia vindo dele uma liberdade que era absolutamente inegociável. Uma coisa mais selvagem mesmo, e que era muito física. Tipo, diferentemente dos nossos gatos domésticos que não conseguem sair do território da nossa casa, ele provavelmente por suas origens ferais era totalmente de outro alcance. Uma coisa absurda desses gatos é a capacidade de escalarem qualquer coisa que seja vertical. Tipo um muro de mais de dois metros e meio de altura.
O Tchuruco tinha uma convivência muito importante com a gente, também porque foram os primeiros meses da pandemia, duríssimos tempos e o gato vinha sempre irradiando amor, luz, prazer, riso. Um dia ele sumiu, ele que sempre voltava nas mesmas horas. Procuramos em toda parte e de todo jeito. Coisa de cinco dias depois nós conseguimos saber que numa noite do fim de novembro ele foi envenenado por um vizinho. Quem o encontrou o colocou num saco de lixo e o jogou numa lixeira da prefeitura. Foi um lance muito perverso, o cara que o envenenou é uma espécie de serial killer de gatos, matou quatro em um mês. O nosso foi o terceiro. Eu fiz um escarcéu na vizinhança, redigi e imprimi e entreguei uma carta na caixa do correio de mais de 250 vizinhos, abrimos um processo no Ministério Público que até teve alguma continuidade. Mas poucas vezes senti tanto ódio e impotência. Foi uma coisa muito violenta porque eu não encontrei nenhum sentido. Tipo: houve uma situação décadas atrás que na minha família fomos assaltados, amarrados. Foi uma experiência aterrorizante, também porque os assaltantes achavam que éramos uma coisa que não éramos: ricos. Meus pais são professores... Foi terrível, depois desse acontecimento nem nossas ligações familiares, nem conseguimos mais ficar na casa em que vivíamos há décadas. Mas até ali deu no depois pra encontrar um sentido macro: a violência social da desigualdade econômica, racial, estrutural, essa merda que é o Brasil. Mas, matarem gatos envenenados? Putz... não tem sentido. Ou eu não consegui encontrar nenhuma motivação. Eu sucumbi mesmo. Passei semanas sem conseguir trabalhar lendo mapas, porque eu não conseguia auxiliar qualquer pessoa que fosse da nossa espécie, porque se um ser humano é capaz de fazer um negócio desses de envenenar um animal...
Os poemas eu comecei a escrever em 2021, quando senti que ainda precisava escrever sobre e para ele como um gesto de luto mesmo. E isto foi depois de tomar os cogumelos que contei numas respostas acima. Eu passei horas curtindo os efeitos sem grandes emoções, até que por acaso me deparei com uma foto do Tchuruco e chorei como um bebê. Aí entendi que precisava fazer algo além do que já tinha feito e o novo número da Gratuita (que sairá em breve) tem um tema global que encaixa bem nisso. Então escrevi. Me sinto um pouco mais em paz com isto depois de ter escrito. A escrita tem, ainda bem, esse poder.
No mais, acho que não tem uma coisa no meu dia a dia que não seja alterada pela convivência com as espécies companheiras. E as suas formas de comunicação empática comigo sempre determinam o que eu escrevo, sim. Inclusive a totalidade completa de entendimento sem que haja decodificação total da linguagem entre um e outro. Isto é maravilhoso na sutileza e enormidade que é. Eu sobrevivo na mentalidade social humana (que é tão rígida e normativa) graças a isso, graças a eles, os bichos que nos são companheiros.

mv sua presença nas redes sociais modifica as relações que cultiva com outras espécies?
jch Sim. Eu faço questão de criar diários sobre elas nas redes sociais, né? Estou sempre postando plantas, animais, imagens desses seres. Isto porque eles me apaixonam mesmo e os acho muito plásticos, muito bonitos. Mas também porque eu acho que o ângulo de visão através das outras espécies têm muito mesmo que se expandir e ser cultivado no contemporâneo. Estamos vivendo um modismo em relação a esses temas e que pra sobrevivência do planeta não pode ser só uma moda passageira. Temos que aproveitar esse momento pra que essas concepções de que as espécies companheiras nos são vitais, de que sem planta não tem vida, de que somos água e minério, etc., esse tipo de percepção precisa se entranhar radicalmente no maior número de pessoas possível.

mv e você acha que saber sobre as espécies, sobre as configurações do céu e estudar os fluxos das pessoas nas redes são matérias para uma escrita de vida?
jch Eu acho que sim. Sobretudo porque é o que eu escuto dos oráculos com os quais me consulto. Mas sinto que eu mesma ainda estou longe de conseguir verdadeiramente manejar isso tudo.

mv o que você tem colhido?
jch A sensação no ambiente de que em breve vou voltar a escrever poemas. A gênese de um livro sobre astrologia. A maturação de um livro em prosa. A incerteza de onde e quem serei em questão de meses, ou mesmo dias.
